terça-feira, 30 de junho de 2009

RESULTADO DO CONCURSO!!!

Pessoal, saiu o resultado do Concurso Escritores de Terror! Os vencedores foram:

Nascido no Dia do Senhor, do autor Wilson Lourenço – 8 votos

O Guarda-Chuva, de L. F. Riesemberg – 6 votos

Fobia Dictióptera, de Johnatan Ferreira – 3 votos

Parabéns aos ganhadores! Ah, e aqui vai a relação dos autores de todos os outros contos. Parabéns a vocês também, pois todos que se arriscaram nesse concurso são vencedores, na minha opinião! Abraços, e continuem atentos ao blog, pois ainda falta entregar o prêmio técnico!

Relação de contos e autores:

Por trás de seu Amado - Guilherme Heilmann

A Busca de Estheghual - Celso Junior

Sem Remissão - Thomé de Oliveira

O Caçador de Rãs - Katiane Servelhere

Sheol - Rubem Cabral

A Luz no Casarão - Ãngela Oiticica

O Equilíbrio da Escuridão - General Ming

A Rua das Três Meninas - Johnny Allan Ferreira

O Escolhido - Luis Oselieri

Seu Deus - Hebert Tada

Nicole, a Sobrenatural - Vitor Bolina

Capela de Hóros - Tiago Cosmo de Oliveira

O Falso Mensageiro - Rafaela Malon

A Viagem - Mike Varão

Museu do Terror - Duda Falcão

Homens não Choram - Marcelo Galvão

O Caminho para o Inferno - Bruno Borges

Eterna Noite - Ana Maria de Souza

Noite sem Lua - Geralda Aparecida Dias

Pesadelo com Cobras - Marcelo Hageman dos Santos

Ao Pôr-do-Sol - Fabiana Bia Ferreira

Coleção - Elton Menezes

Escrava - Carolina Kiss

O Anjo Vingador - Gustavo Pierobon

A Princesa de Leningrado - Rafael Bueno

Carta de Advertência - Fausto Campani

Inocência Deturpada - Junior Filth

Apunhalada pelas Costas - Geraldo Trombim

Do Outro Lado do Arco-Íris - Leandro Barreiros

Guerras - Diogo Bernadelli

O Médico e a Paciente - Leandrito Garcia

3-D - Caio

No Caminho das Amoras - Sílvia de Moura

Inspiração - Yuri Maval

A Beleza de Tereza - Karina R. V. dos Santos

Ele - Rodrigo Jr

A Cidade Onde Vivem os Mortos - Flavia Tavares


E é isso! Parabéns, pessoal, pela criatividade dos contos! Muitos de vocês fizeram o máximo para fugir dos clichês, e entregaram histórias realmente diferentes! Aguardem mais comentários deste que vos fala sobre alguns dos contos concorrentes.

Abraços!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

VOTAÇÃO!!!

Pessoal, o prazo de envio dos contos já encerrou, e agora está aberta a votação. Por favor, conto com a participação de vocês, leitores! Quem quiser votar, é só clicar no seguinte link do orkut:

http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=131282&tid=5347848030122123574

No tópico, basta votar no seu conto preferido (apenas um voto por pessoa), e pronto! A votação vai até dia 30 de junho. Quem tiver apenas profile "fake" precisará se identificar para mim por depoimento, ok? E é isso.

Abraços, boa sorte a todos, e até mais!

terça-feira, 16 de junho de 2009

A CIDADE ONDE VIVEM OS MORTOS

Sabe,Eu já estive ai,como você nessa situação...Não precisa gritar,você precisa entender que vivemos muito bem assim,Eu vou te contar minha história enquanto o sol não nasce,pare de chorar e escute...

“Eu estava farta da minha rotina,você já sabe meu nome,eu me chamo Cristina e sempre vivi com meu pai,mas nos últimos anos tive que morar com a minha mãe.Como eu sentia falta do meu pai,não que eu não amasse minha mãe,não era isso.Eu sentia falta de um lar,quando meus pais se separaram eu era muito pequena,mas sabia que desde então minha mãe trabalhava viajando pelo país para ganhar a vida.Minha mãe era uma pessoa adorável e sempre dedicou todo seu tempo livre para me dar atenção.Ela era representante de uma grande rede de lojas,assessorava e vendia franquias pelo Brasil,por isso não se demorava mais que 6 meses em uma cidade,ela conhecia vários lugares e fazia novas amizades por onde passava,mas nunca criava raízes em lugar nenhum.

Era assim que eu estava vivendo nos últimos 3 anos,passava 6 meses em uma escola,depois desse tempo,tinha que viajar e me matricular em um outro colégio.Você deve imaginar que tudo era muito difícil,pois eu não era tipo um de jovem muito entrosada –não herdei isso da minha mãe-e demorava muito para fazer amizades.Não que eu fosse fresca,não,eu não era metida,eu só era muito tímida.A distância fez com que eu perdesse o contato com meus amigos de infância e aos 17 anos era uma garota isolada.A única coisa que me impedia de entrar em um profundo estado de depressão era o fato,de apesar de tudo, eu ser uma pessoa muito forte,eu tinha plena consciência da minha situação e esse conhecimento era útil para afastar os fantasmas da loucura em meio a solidão.

Até que no verão de 2004 eu e minha mãe chegamos a esta pequena, na verdade minúscula cidade,Santa Agatha.Você sabe que este município é daqueles tão afastados e tão pouco habitados que se tem a sensação de que se esta esquecida por Deus.Era realmente um projeto louco,mas foi o trabalho dela que nos atraíram para este fim de mundo.Antes de ouvir minha mãe falar, eu jamais imaginara que pudesse existir um lugar como este, dentro do estado de São Paulo.

Santa Agatha tinha a incrível população de 2500 habitantes,que vivem em sua maioria ainda mais isolados.Você sabe que alguém teria que fazer uma caminhada se quisesse visitar seu vizinho.O centro da cidade é a praça,que contava com todos os atendimentos que são essenciais para se dizer que isto é um município,tudo como você já conhece.O posto médico,a sede da prefeitura,e suas pequenas lojas que faziam o comércio local.A cidade também tinha a pequena escola e o cemitério que estamos agora.Não comece a chorar logo você vai ver que tudo está certo...

A nossa casa é grande para duas pessoas sabe,mas não tínhamos muita escolha, ela fica logo ali e se eu andar demais seguindo pelo quintal dos fundos,venho parar aqui,no Cemitério que era exatamente como vemos hoje,sem tirar nem por.Aqui é tudo sempre igual.

Foi em meio a lamentações,que na segunda-feira de manhã me levantei para meu primeiro dia de aula na pequena escola,eu realmente não tinha gostado daqui.Era como se a cidade passasse a impressão de estar abandonada há muito tempo...

Entrei na sala de aula apostando comigo mesma quantas pessoas teriam a minha idade nesta cidade esquecida pelo tempo,me surpreendi ao encontra na sala um único garoto.Por mais que eu achasse que a cidade era pequena, uma pessoa na sala era um absurdo concorda?Que cidade é esta?Onde estão as pessoas?Era isso que eu pensava.A pequena professora também estava presente e não parava de escrever no quadro negro,só virou a cabeça por um momento para dizer que me sentasse e começasse a copiar a matéria.Você sabe como é o temperamento da senhorita Ana.

Olhei diretamente para o garoto.Nossa mais que olhos estranhos,eles eram de um azul tão pálido,eram quase de um tom cinza sem vida.Mas fora isso ele era lindo.Tinha a pele branca como se nunca tivesse visto o sol,seus cabelos eram loiros e se acentuavam perfeitamente formando um conjunto de estranha beleza.

Me adiantei e sentei ao lado do garoto e ele me cumprimentou “Meu nome é Erick e o seu?” Eu quase gaguejei para dizer meu nome e ele riu.Criei coragem e perguntei se não tinha mais ninguém da nossa idade na cidade,ele ainda não tinha tirado os olhos de mim e isso me deixava ainda mais constrangida.

Ele respondeu que existia outra escola perto de uma fazenda que era mais próxima para a maioria dos outros alunos.Fiquei vermelha,“Erick” o nome já viajava na minha mente,eu nunca tinha tido um namorado sério e me achava estúpida por achar que teria agora.Em seis meses eu estaria fora desta pequena cidade e provavelmente nunca mais o veria depois disso.

O tempo foi passando e a cada dia eu me apaixonava por Erick, e em menos de um mês eu já estava namorando.Passávamos o tempo todo juntos,líamos até livros juntos. Eu realmente o amo sabe...

Mas na época já estava começando a ficar preocupada com minha mãe,ela sempre foi uma mulher muito ativa, independente e de idéias próprias,mas ela tinha mudado da água para o vinho, tinha decidido que não íamos mais nos mudar.Eu fiquei até feliz por poder finalmente ficar em um lugar só e poder ficar com Erick,mas esse comportamento era muito estranho e quando questionei minha mãe sobre os motivos ouvi uma coisa que já estava me deixando intrigada,e que só agora compreendo...

“Para que mudar,estamos tão bem assim”

Eu ouvia isso em todo lugar sempre que o assunto envolvia uma alteração na rotina do lugar.Sempre a mesma frase sobre tudo “Para que mudar,estamos tão bem assim”.Assim como você,mas logo você vai entender... Não adianta chorar...

Nada adiantava,qualquer mudança sugerida era recebida da mesma maneira,nada era novo,e até para uma cidade pequena aqui nada acontecia.Nas ruas todos os dias as mesmas pessoas, nos mesmos horários,na escola toda semana se voltava à mesma matéria,em casa minha mãe tinha começado a seguir a risca um cardápio semanal que nunca mudava.Tudo aquilo estava me deixando louca,tinha notado até uma mudança na aparência da minha mãe,antes seus olhos antes eram verdes e cintilavam alegria agora eles tinham o mesmo tom azul- acinzentado.Na verdade comecei a notar que todos na cidade tinham o mesmo olhar vago e sem vida.Eu já estava começando a ficar com medo e apesar de amar muito Erick,já estava torcendo para que minha mãe mudasse de idéia e nós fôssemos embora o mais rápido possível.

Uma vez até perguntei ao Erick se ele já tinha notado o olhar das pessoas e o que ele me disse provocou arrepios na minha espinha.“Você devia parar de procurar as coisas,pra que mudar,vivemos tão bem assim”Agora eu sabia que tinha algo errado naquela cidade,e o que quer que fosse,tinha afetado minha mãe também.

Eu estava transtornada demais,não entendia o que estava acontecendo,sai de casa no meio da noite decidida a dar uma volta para espairecer meus pensamentos,sai pela porta dos fundos e sem querer já estava caminhando aqui,por este mesmo cemitério.Eu nunca tive medo de fantasmas mas os acontecimentos vividos na época fizeram com que minha imaginação estivesse mais fértil que o normal.A única coisa que fazia com que eu continuasse caminhando era meu próprio orgulho bobo,odiava admitir,até para mim mesma que estava com medo.Se não fosse isso já voltado pra casa.

Caminhei, até que cheguei na parte mais recente do cemitério,bem ali atrás eu parei para ler alguns nomes nas lápides,na verdade não queria ficar muito longe da minha casa, eu ia dar uma volta por ali e voltaria pra casa como se nunca tivesse estado com medo de um cemitério.Que idéia sair caminhando à noite não acha?E ficar com medo de um monte de túmulos, o que os mortos poderiam me fazer? Nada!Pelo menos, era isso que ela achava até ver a foto da bibliotecária em uma das sepulturas.

Meu coração começou a galopar no peito, eu dei dois passos para trás e reli o nome gravado.Era ela mesma “Ângela Batista”você a conhece não é?Pessoa adorável... Achei que estava louca de vez,olhei o próximo tumulo e tomei um novo susto, dessa vez era a foto e o nome do dono da mercearia,quando comecei a raciocinar percebi que a cidade toda estava enterrada neste cemitério!As informações entravam e se amontoavam.Eu não conseguia tirar uma conclusão daquilo tudo que eu estava vivendo.Levantei a cabeça, não queria mais ficar olhando para as lapides das pessoas que eu tinha convivido a mais de 7 meses,tudo parecia um grande pesadelo,só queria acordar de tudo isso.Mas quando levantei minha cabeça vi na última fileira de túmulos um muito recente e uma cova aberta.Minha curiosidade foi maior que meu bom senso,eu queria saber de tudo.Tudo que esta cidade escondia,queria saber de tudo antes de fugir daqui para nunca mais voltar.Eu já tinha uma idéia do que ia encontrar, mas precisava ter certeza,na verdade estava com esperança de estivesse enganada.

Mas eu não estava,era uma cova muito recente,a grama ainda nem tinha crescido o suficiente para esconder a terra fofa,ali estava à foto da minha mãe...O nome dela e a data de dois meses atrás.Eu chorei,não sabia o que tinham feito com a minha mãe,mas tinha certeza que planejavam fazer o mesmo comigo, por que ao lado,na cova aberta, eu viu meu próprio tumulo. Na foto meu olhar era azul- acinzentado,era um olhar morto.Agora eu já sabia por que a cidade era sem vida, por que tudo era igual...Todos estavam mortos...Mas eu não ia ficar ali, não ia esperar ninguém tentar me matar,eu iria embora daquela cidade maldita naquela mesma hora.

Sabe...Eu teria feito isso se o tumulo ao lado do meu próprio não tivesse me chamado tanto a atenção... Ali sepultado estava a pessoa que eu julgava amar.

“Erick Medeiros 1973-1990” Aquilo me abalou literalmente, eu tropecei nos meus pés e cai no buraco ao lado... Nossa você pode imaginar meu desespero? Acho que você pode... me diga se não é a mesma situação? Eu comecei a gritar como uma desesperada que eu era naquele momento, percebi que para minha falta de sorte, aquele tumulo tinha bem mais que sete palmos de profundidade,não consegui subir, tentei me segurar em uma raiz mas foi inútil, continuei gritando até não te mais forças em meus pulmões, depois me sentei e chorei, chorei até não ter mais lagrimas... O sol já estava nascendo quando eu pude ouvir som de pessoas se aproximando, elas não falavam, mas eu podia sentir que estavam se aproximando até que vi as cabeças, uma a uma, apareciam para me olhar, aqueles olhos mortos me observando não fizeram bem para a minha coragem e logo comecei a gritar de novo... Gritei até que vi minha mãe naquela pavorosa multidão, ai comecei a chorar e chamar por ela, ela me olhava como se eu não fosse sua filha e ela estava certa, minha mãe não era ela, naquele momento tive certeza que minha mãe estava morta.

Finalmente alguém disse uma palavra em meio aos meus gritos, era ele, Erick... E por um momento achei que ele fosse me tirar dali, mas eu estava enganada, ele só me disse uma única frase, antes de todos começarem a me enterrar viva.

“Você não vai mudar meu amor... vivemos tão bem assim”

No outro dia acordei com o sol batendo na minha janela, e sorri. O sono não era reconfortante mais eu estava bem assim, a escola também... Eu já sabia tudo, mas não vi motivos para mudar, não precisava saber de mais nada que já não sabia... Erick sempre vem me visitar depois da escola e eu o amo, poderíamos nos casar, mas não existe motivo para isso. Aqui, nessa cidade onde o sol não aquece, mas também não queima. Onde a vida não muda, mas também não machuca. Onde o amor nunca morre, mas também não renasce. É aqui que eu vivo minha morte com quem eu amo... Pois a morte é assim, estagnada... E eu descobri que vivemos tão bem assim... Logo você também vai perceber isso... O Sol já esta nascendo, e todos estão chegando... Não chore, eu serei sua amiga e logo seu namorado também vai entender que vivemos na cidade onde vivem os mortos.

ELE

Doce era o sentimento que mantinha por ela,a cada vez que eu sentia felicidade em seu sorriso,toda vez que a defendia,vez após a vez eu adorava estar com ela.Eu estava realmente apaixonado por aquele ser encantador.

Mas nem tudo que reluz é ouro, ela era médiun e eu também,mas não mudaria nada se ela não tivesse ignorado o meu jeito de a proteger.

Tudo que eu queria era seu bem,mas ela não poderia entender isso,ela nunca pode entender nada,eu sempre era o vilão da história,eu havia dito que ele a atacaria,ela não quis escutar,se achava um super-herói mas não era.

Nunca havia amado alguém daquele jeito,e senti que eu precisava fazer isso,ou eu ou ele o faria,foi difícil ver ela se contorcendo naquela banheira,enquanto suas entranhas explodiam com meus socos e sua força para sair,eu só queria que fosse rápido,nada demorado,para ela não sentir.

Ele ria da minha decisão,ele ria claramente por eu preferir isso,do que deixar na mão dele,ele é algo desumano,eu deveria ter o matado antes,mas sempre tive medo de fazer isso.

Hoje em dia sei que não vou conseguir o matar,essa camisa de força me impede de o matar,talvez se eu morder a língua dele,talvez na verdade se eu morder minha própria língua.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A BELEZA DE TEREZA

Ao ouvir passos apressados ecoando no ambiente vazio da igreja, Cristina tentou esconder com um capuz o rosto da jovem sentada ao seu lado. Suas mãos trêmulas nem bem terminaram a tarefa, quando foram agarradas por uma mão forte.

- Pare com isso! – ordenou o jovem padre, Tadeu, sentado no banco atrás delas.

- Mas... Eu não sei mais o que faço. A cada dia ela está mais feia...

- A beleza dela não está na parte de fora, mas de dentro.

- Mas, senhor, esta manhã encontrei minha vaca leiteira decapitada... Fui ver Tereza na cama e ela estava toda ensangüentada. Estou com muito medo.

Enquanto a menina permanecia imóvel, sentada ao lado da mãe, o padre descobriu-lhe a cabeça e acariciou-lhe os belos cachos dourados.

- Você não consegue enxergar a beleza dessa menina. O que você tanto teme? Somente os pecadores devem temer algo.

- Senhor, entenda, por favor! Minha filha é uma aberração! Todos os tratamentos que ela fez com vocês não trouxeram resultados. O tempo passa e ela piora... Conversei com meu marido e ele pediu que eu viesse até aqui. Precisamos de ajuda!

- Você precisa de ajuda, realmente. Ela, não. É uma criatura divina. Não é, minha querida?

Lentamente, a jovem virou-se para o padre, revelando seus doces olhos azuis que lacrimejam. Sua pele alva tornara-se vermelha no momento em que começara a chorar.

Cristina ficou olhando para a filha e observou, atônita, as lágrimas negras que rolavam em seu rosto repleto de olheiras e veias saltadas.

- Venha, minha querida. Por mais que tentemos, sua mãe nunca lhe aceitará do jeito que é. – diz o padre, levantando gentilmente uma das mãos de Tereza, conduzindo-a para longe da mãe.

- Não! O que está fazendo? Minha filha é perigosa! Vou interná-la!

- Você devia amá-la do jeito que ela é, não tentar fazê-la ser do jeito que você quer.

Aos prantos, Cristina leva as mãos à cabeça, quando escuta um barulho muito alto. Percebendo que vinha da porta da igreja, a mulher direciona o olhar para um homem que tranca a porta de entrada, em seguida correndo na direção dele e abraçando-o fortemente, trêmula.

- Amor! Ajude-me! O Padre Tadeu pensa que estou errada. Você viu o que aconteceu hoje. Conte para ele! Conte daquela menina que sumiu também! Conte do...

- Cale-se! – esbravejou Gusmão, o marido de Cristina, tirando suas delicadas mãos de cima dele, largando-a de joelhos no chão, e caminhando na direção de Tereza e do Padre.

- Sua benção, Padre. – disse, beijando uma das mãos de Tadeu.

- Deus te abençoe, meu filho.

Tadeu abriu um largo sorriso, analisando atentamente Cristina em seu esforço de levantar-se, e alegou:

- Sua mulher está precisando de tratamento, Gusmão.

- Sei disso. Ela está vendo problema em tudo, Padre. O que o senhor acha melhor fazer? Acha que minha filha não serve para esse mundo.

- Todos servem para esse mundo, Cristina! Todos! Deus tem um plano para todos nós! Tereza também é parte dos planos de Deus! – gritou, fazendo com que sua voz ecoasse e chegasse como se fosse espinhos aos ouvidos de Cristina.

- Pare com isso! Eu não consigo entender. Gusmão, você também está contra mim? Não consegue ver que sua filha não é normal? É quase um demônio?

- Não, meu amor. Nossa filha é uma criatura de Deus e deve ser respeitada e cuidada por nós. – afirmou, virando-se para a menina, fitando a linda face serena da garota e tocando sua pele de veludo com as pontas dos dedos.

- Você está louco! Todos vocês estão loucos! – gritava a mulher, desesperada, chorando incessantemente, ao mesmo tempo em que notava as unhas de Tereza que cresciam gradualmente.

Tereza, parada ao lado do padre, sorria com os lábios semicerrados, enquanto o mesmo arrumava seus longos cabelos e murmurava algumas palavras em seu ouvido.

- Eu vou sair daqui se vocês não me derem uma explicação! – alertou a mulher, histérica.

- Vai deixar sua filha aqui? Largar sua cria deste jeito? Leve-a com você... – propôs Gusmão.

- A filha é sua também, Gusmão. Vou levá-la, sim. Não quero deixá-la com vocês, que parecem estar enlouquecidos.

- Enlouquecida, com certeza, está você, minha cara. – disse Tadeu.

- Pois bem. Eu estou louca, não é? Algum de vocês, por acaso, percebeu que as unhas dela estão crescendo enquanto conversamos aqui?

Os dois homens olharam para as mãos da jovem, com suas longas unhas e, simultaneamente, concordaram com a cabeça.

- Está maior mesmo. Que bom, não é? – disse Gusmão, dirigindo-se ao padre.

- Muito bom mesmo. – respondeu Tadeu, sem pestanejar.

- Como isso pode ser bom? Nenhuma pessoa normal tem unhas que crescem tão rápido! Desde que ela era menina, eu tenho que cortar-lhe as unhas duas vezes ao dia! – gritou a mulher, seguida por um silêncio absoluto, que foi, por fim, quebrado por Tadeu.

- Se você ainda não percebeu, devo avisar-lhe que Tereza não é uma pessoal normal. É uma criatura divina que está na Terra a serviço de Deus, que tem um plano para ela.

- Cansei desta história. Vamos, filha. Vamos sair daqui.

Vendo que a jovem não obedecia, Cristina ordenou:

- Vamos, Tereza!

- Eu acho que você não deveria falar assim com ela. Meio grosseiro, não acha? – questionou o padre, jocosamente.

- Não, não acho. Filha, vamos!

Novamente, Tereza não se moveu, o que fez com que Cristina caminhasse até ela, ainda com o corpo trêmulo, agarrando-lhe violentamente o pulso, que começou a sangrar. Consternada, a mulher deu um grito de desespero e um pulo para trás.

- O que é isso, minha filha? – questionou, sem obter resposta.

- Isso não é nada. Você a machucou. – afirmou Gusmão.

- Não, não machuquei! Estou falando que estou assustada com tudo isso! Vou sair daqui e chamar a polícia!

Gusmão e Tadeu olharam-se, sorriram um para o outro e começaram a caminhar na direção de Cristina, que andava para trás evitando que tocassem nela. Gusmão, um pouco irritado, decidiu começar a explicar o que acontecia:

- Você não nos deixou fazer a nossa parte!

- Que parte? Do que você está falando, Gusmão? – questionou a mulher, ainda caminhando para trás, em direção à porta de entrada da igreja.

- Já dissemos que Tereza é um presente que Deus nos enviou. Um ser superior, que tudo pode. Um ser belo como ninguém mais.

- Belo, como?! Nossa filha está a cada dia mais feia!

- Para os seus olhos. Para os meus, que entendo a missão dela e que quero ajudar, Tereza é a criatura mais linda que existe. – disse, olhando para a filha e tocando-lhe docemente o rosto. – Uma moça angelical, que está aqui apenas para ajudar, para fazer justiça.

- Que justiça é essa? – indagou Cristina, a poucos metros da porta da igreja.

O padre Tadeu, ainda tentando alcançar Cristina, juntamente com Gusmão, olhou para trás, onde havia permanecido Tereza, e fez-lhe um aceno com a cabeça, solicitando que se juntasse a eles, pedido que a moça atendeu prontamente, colocando-se entre sua mãe e a porta. Encurralada, Cristina parou onde estava e deu um giro com o corpo, percebendo que estava cercada.

- Vocês vão me matar? – perguntou, ajoelhando-se no chão.

- Por que a mataríamos? – questionou o padre.

- Não sei. Não fiz nada.

- Pois eu posso dizer-lhe algumas coisas que você fez, que estão em desacordo com o que deve ser seguido.

- O que, por exemplo?

- Por exemplo, o próprio fato de negar a própria cria.

- Não estou negando, só quero ajudar!

- Ajudar, como? Ela deve seguir a natureza dela. Você apenas ajudaria se o permitisse.

- Mas ela está se tornando num monstro, numa assassina!

- Graças a nós, que estamos esforçando-nos para isso. E monstro é uma palavra pesada demais. Ela é uma arma de Deus. Assassina em nome do senhor.

- Como isso pode ser?

- Sua filha tem poderes sobrenaturais, uma força de trinta homens, capacidade de correr quilômetros sem se cansar...

- Pára com isso! Como você sabe disso?

- Eu sei porque convivo há muito tempo com ela e...

- O tratamento!

- Sim, um ótimo tratamento. Ela não poderia estar melhor. E você, como mãe, deveria estar atenta às habilidades dela, mas preferiu ver defeitos na menina.

- Minha filha tem dezesseis anos e não fala! Como isso pode ser normal?

- Já disse! – gritou Tadeu, irritado – ela não é normal. É um ser divino. Se não fala é porque Deus não quer.

- Quero sair daqui! – exigiu Cristina, virando-se e dando de cara com Tereza recostada à porta. – Filha, deixe a mamãe sair.

Com olhos que pareciam mais pertencer a um animal selvagem do que a um ser humano, Tereza olhou para Gusmão, como que a esperar um comando.

- Infelizmente, minha esposa, devemos despedir-nos agora. Você já sabe de tudo, pode morrer em paz. – afirmou Gusmão, sorrindo.

- Vocês são doentes. Filha, vamos comigo. Dê-me a mão, querida. – pediu a mãe, estendendo uma das mãos à jovem.

Parada, a moça fitava Gusmão e Tadeu, aguardando ordens. Não precisou mais que um movimento de cabeça do padre para que Tereza penetrasse suas compridas garras nas costelas de Cristina. Enquanto a mãe não parou de agonizar, a assassina não teve ordens de nenhum dos dois homens de tirar suas unhas do corpo da mãe.

Depois do último suspiro de Cristina, foi dada a permissão para que Tereza fosse lavar as mãos e, com um cortador de unhas, teve suas garras cortadas por Gusmão, enquanto Tadeu escondia o corpo da mulher morta.

Em alguns minutos, os três estavam prontos para sair à rua. O padre cobriu a cabeça de Tereza com o capuz e abriu a porta da igreja. No momento em que pai e filha cruzaram a porta, o padre chamou a moça para ir até ele, a dois passos dali, e beijar-lhe a mão. A jovem menina, com seu rosto celestial, foi até o religioso, beijou-lhe a mão com seus lábios rosados, sorriu-lhe dum sorriso afetuoso, e retirou-se de braços dados com o pai.

Já na rua, a poucos metros de casa, cruzaram com uma vizinha da família, a quem Gusmão cumprimentou com um movimento de cabeça e Tereza com um aceno de mãos. Por um breve momento, o capuz da moça escorregou, revelando o rosto mais animalesco que aquela senhora já havia visto, o que a deixou apavorada e fez com que apressasse o passo, sem nem ao menos imaginar que receberia uma visita noturna da bela menina Tereza.

INSPIRAÇÃO

A noite já ia avançada e Henrique não tinha posto no papel uma linha sequer. Começava a ficar irritado e o sentimento de frustração crescia cada vez mais forte. Como era possível que fosse tão incompentente? Ficara de mandar sua história para um concurso de escritores de horror, comprometera-se e agora não conseguia pensar em nada. Como podia ser caprichosa essa tal de inspiração. O que mais poderia fazer para invocar ideias? Já havia assistido toda a série do velho Freddy, jogado todos os Silent Hill, Resident Evil, Fatal Frame, visto vários filmes de terror oriental, se olhado no espelho num quarto escuro, lera Poe, Lovecraft, Ambrose Bierce, Stoker, Kafka, Stephen King (este último ele precisou de uma boa dose de paciência) e muitos outros autores do gênero. Estava disposto a fazer algo drástico e, infelizmente, clichê. Passaria a noite em um cemitério que existia a duas quadras de onde morava. Sabia de uma entrada pelos fundos, um buraco no muro. Será que teria coragem? Resolveu que iria e levaria o gravador.

Na hora estipulada ele estava em frente ao muro dos fundo do lugar supostamente assombrado, pensando ainda se entrava ou não. Deu de ombros e entrou . Caminhou um pouco entre os túmulos, o vento cortante arrepiando sua pele e mexendo suas roupas. Ligou o gravador e sentou-se sobre uma lápide já desgatada. Agasalhou-se e pôs-se a observar o lugar. As estátuas, cruzes a mármores frios davam-lhe calafrios, no entanto nada lhe veio à mente. O silêncio era aterrador, parecia até que não existia uma cidade ao redor, era como se tivesse entrado em outro mundo. Pensou nas milhares de tumbas espalhadas no cemitério. Ele estava ali, sobre milhares de cadáveres, milhares de gente morta sob seus pés. Estremeceu. Olhou para a o epitáfio do túmulo onde estava sentado. “Ele só queria paz”. Era o que estava cravado na pedra. Um cemitério podia até ser um lugar de paz para os mortos, mas para os vivos, como ele, era bem desagradável.

O farfalhar das árvores e o jogo de sombra das coisas o incomodava. Foi quando pensava nisso que sentiu o frio aumentar e alguma coisa apertar-lhe a garganta com uma força letal. Levou as mãos à área do estrangulamento e não conseguiu sentir nada. Seu pescoço continuava sendo apertado com muito força, com muita raiva. Ouviu um grito ditorcido, alucinado e o aperto intensificou-se. Não resistiu.

Pela manhã o coveiro encontrou o corpo do jovem Henrique. Lamentou e ligou para a emergência. Enquanto aguardava o atendimento chegar se abaixou e pegou o gravador do rapaz, caído ao seu lado. Rebobinou a fita e colocou para rodar. Ouviu apenas estática por alguns minutos, já ia desligar quando a máquina começou a reporduzir:

- Saia daqui, me deixe em paz, Vá embora, me deixe em paz, vá embora ou eu mato você, saia daqui, saia daqui, vá embora ou mato você...

NO CAMINHO DAS AMORAS

A volta para a casa, logo depois de Bia deixar a escola, era sempre cheia de molecagens. Houve época na qual Bia roubava rosas em jardins para enfeitar seus cabelos. Outras vezes, se enfiava em um salão de beleza e fazia testes nas unhas com diversas cores de esmaltes. Agora estava na fase de comer frutas no cemitério.

Os amigos de Bia achavam macabro esse desejo de passar horas entre os mortos. Ela dava de ombros e depois ria: aquela gente não sabia o quanto eram boas e especiais as tardes naquele local sagrado. Fora o silêncio, o campo-santo oferecia outras atrações: algumas alamedas eram tomadas por pés de jabuticaba, pés de goiaba ou de pitangas. O caminho predileto de Bia cruzava pés abarrotados de amoras.

Ela usava a entrada lateral do cemitério e ia percorrendo todos os corredores, observando os túmulos, parando de vez em quando para admirar esculturas religiosas, checar fotos e datas e cheirar flores.

Uma tarde a menina estava sentada em um banco, saboreando amoras bem pretinhas, suculentas, quando um jovenzinho pediu licença para sentar-se ao seu lado.

– Nossa, que garoto lindo, pensou Bia, reparando nos cabelos loiros, nos olhos verdes e no sorriso perfeito dele, que quase a deixou tonta. Olhou para si mesma e se achou horrível –estava de uniforme, suja de respingos de amora, com um rabo-de-cavalo malfeito e com as meias abaixadas, deixando a mostra as pernas cheias de marcas de tombos. “Ai, logo hoje que estou horrorosa, um gatinho vem puxar papo.”

A conversa entre os dois fluiu como fossem amigos de longa data. Ele parecia tão maduro para idade. Falava com tanta sabedoria e conhecimento que foi encantando Bia. Além de lindo, era extremamente simpático.

Depois de muita falação, eles caminharam juntos até a entrada principal do cemitério. O garoto, que disse se chamar Pepe, despediu-se ali e sugeriu um novo encontro no dia seguinte, na mesma hora e local.

– Cuidado ao atravessar a avenida, tenha atenção redobrada, gritou Pepe.

Por pouco Bia não ouviu o alerta. Ela já tinha se afastado uns bons metros, em direção à avenida. Pepe continuava parado, encostado ao portão, do lado de dentro do cemitério. A menina levou um baita susto ao ver um caminhão desgovernado ultrapassar o sinal vermelho e bater em um carro.

– Caramba, ainda bem que o Pepe deu aquele grito. Como ele sabia que ia acontecer um acidente?

Pepe e Bia se encontraram dias seguidos no cemitério. Ele sempre se despedia no portão, nunca levava Bia além daquele limite. Apesar de falante, Pepe guardava um ar misterioso. Não contava nada sobre sua escola, sobre seus pais, nem ao menos dizia seu endereço ou telefone. Mas constantemente tinha um bom conselho ou recomendação, que a livravam de um perigo.

A garota estava muito animada com a nova amizade. Ela não havia entendido a despedida de Pepe no dia anterior. Ele disse, com certa tristeza: “Até algum dia, querida”.

– Como até algum dia?, retrucou Bia. Amanhã virei aqui, no mesmo horário.

E lá estava a menina, na demasiadamente quente e ensolarada tarde seguinte. Bia sentou-se embaixo de uma amoreira para se esconder do sol. Esperou durante horas a chegada de Pepe. E nada de o menino bonito aparecer.

A garota fez o velho conhecido caminho até a entrada principal do cemitério. No meio do trajeto, um jazigo chamou sua atenção. Ela nunca havia reparado nele. A estátua de um anjo em oração destacava-se em meio a flores e fotos. Bia aproximou-se. Na lápide, as datas revelavam que um jovem de 15 anos havia sido levado inesperadamente do convívio da família. A foto do garoto loiro e a última saudação chocaram a menina: “Pedro Henrique, você nos deixou cedo, olhe por nós. Pepe, te amamos, você sempre viverá em nossos corações”.

3-D

Armei meu ninho em uma poltrona ordinária na quarta fileira frontal e, obedecendo ao costume, degustei a barra de chocolate – refutando qualquer contra indicação de ingerir nutrimentos antes da sessão terminar.

Precisava de energia calórica para revigorar minha consciência. Os atletas estimulam seu desempenho com esteroides anabolizantes. Eu, cinéfilo e crítico da sétima arte, utilizo carboidratos.

Encalhei em um cinema bem monótono: arquibancadas em declive, estilo coliseu, estofado vermelho volumoso e carpete preto, cercados pela extensa câmara descolorada de branco, onde o equipamento sonoro arcaico e as poucas fontes luminosas distribuíam-se minuciosamente pelo multíplex. A saída abria-se aos fundos, como numa igreja.

Clima afável, porém não averiguei nada da prometida “revolução nos meios de comunicação”.

Gigantes da indústria do entretenimento, nacional e estrangeiro, ilustravam a assembleia. Todos fisgados até as ruínas daquele complexo abandonado, numa micro cidade da qual ninguém ouviu palavras sobre, pela mesma razão: um convite surreal. Há uma semana recebi a “amostra grátis” no escritório do jornal onde trabalho.

Ilusionismo, vapores alucinógenos, bruxaria, iorubá, neo alquimia ou pacto com o demônio, eu não soube responder. Sabia apenas que a tal “Máquina dos Sonhos” era o projeto de cinema 3-D mais convincente do qual já vim a assistir.

Entretanto, mantive a postura cética, como sempre. Estou aqui para que Bonfim Thunderbolt, o homem que caçou estes patrocinadores, prove-me da autenticidade de sua invenção.

Uma mulher de vestido escarlate equilibrava uma bandeja como se andasse na passarela, enquanto seguia pelos convidados distribuindo estranhos petiscos, acompanhados de copos de água. Livrei-me da embalagem do chocolate, para não espalhar suspeitas.

- Aqui está senhor – sorriu a mulher.

Seus dedos soltaram uma minúscula pílula na minha mão. Exótico comprimido preto e branco, de uns 0,5 cm de espessura. Na outra palma me impeliu a agarrar o copo descartável, despejando a jarra de água em seu conteúdo.

- Tome direitinho e tenha um ótimo filme!

- E a função da pílula seria? – questiono, farmacofóbico como sempre.

- Tornar sua estadia uma aventura inesquecível!

Devia ser a primeira vez que um “armazém” de entretimento adota a iniciativa de drogar os espectadores, para desde modo “extasiar” a experiência. Vou deixar esse trecho bem cáustico na resenha. Estranhamente, não houve controvérsia dos demais convidados, aquela moça sabe convencer. Sem delongas, Thunderbolt transpôs velozmente a sala de projeção, ascendendo o palco.

- Bom, não posso elucidar com palavras o que a “Máquina dos Sonhos” representa – balbuciou Bonfim, mal pausando para respirar - mas ela certamente evidenciará por si própria o magnífico potencial do qual dispõe. Preparem seus sentidos senhores, e que os sonhos se tornem realidade!

As luzes desincorporaram o teatro, os olhos invalidaram-se com a abstinência de claridade. Um glóbulo branco fosforescente acende no campo aéreo da penumbra. A aparição luminosa incidiu no telão, afugentando as sombras.

Subitamente, um Big Bang de imagens eclodiu em minha íris. Verde-amarronzado suprimiu as demais cores, procriando uma floresta gigantífera, que colonizou inteiramente o perímetro ocular. Vegetou-se árvores utópicas, aberrativas, que bloqueavam o azul-celeste, equiparando sua altitude ao de arranha-céus metropolitanos.

Uma brisa vivida me beijou a queima rosto, e fui capaz de aspirar o odor herbívoro da natureza. Não pude discutir a veracidade da névoa, que deslizou pelo piso e me desagasalhou. O tato, as sensações, eram todos reais.

Um cão da raça labrador retriever – de carne e osso – espargiu o tapete de folhas mortas e distintos húmus que revestia o solo da floresta equatorial, correndo tal um fugitivo de tourada. Vestia chapéu de palha e cachecol azul, o convertendo numa vicissitude vulgar para o painel proposto. Fantasticamente, o canídeo salta no palco, como se fosse refratado para o nosso mundo.

- Boa tarde senhores! – exclamou extraordinariamente o labrador – Meu nome é Plutão, e serei o guia durante este prodigioso tour!

Os executivos conheciam perfeitamente aquela prosopopeia: atribuir características humanas a animais, quadruplicando seu carisma, especialmente em meio ao publico infantil. Ouvem-se tosses e bufos – ninguém na plateia estava impressionado.

- Apertem suas emoções e preparem-se para a viagem! – entusiasmou o guia.

A barca audiovisual nos transportou pelas vísceras do bioma, sobejando uma realidade genuína. O guia enfatizava os espécimes do ecossistema, definindo as características do animal, cargo na teia alimentar e função no meio-ambiente.

Depois de serem apresentados, as formas de vida tridimensionais transpunham a projeção e passavam a integrar o público, contracenado com as testemunhas. A fauna compunha-se da biomassa típica de uma floresta tropical. Alimentei um mico-leão-dourado com biscoitos industrializados, e ele gostou.

Inesperadamente, o ritmo do informativo foi cortado. Uma progressão de acordes de violão começa a soar. Harmonia suave, belo anestésico sonoro. Plutão havia materializado o instrumento não sei de onde, e tocava como se tivesse polegares.

- Um fato tenebroso tem eu a recitar. Algo ruim escolheu essas terras para habitar. Essa melodia, toco tranquila para não os matar do coração. É um aviso de amigo, dado por seu bom companheiro Plutão. Quando da crosta da catacumba sair, aquele que chamam de “Surto da Cripta” suas almas vai querer possuir, estão sejam cautelosos e nunca deixem sua atenção se despir!

Detectamos uma zona de desmatamento no percurso, onde o céu planava feito uma pintura suturada nos contornos das copas das árvores – uma janela aberta na cerração da mata, exibindo o azul colossal, o astro solar radiante e o baile de nuvens. Captou-se fato inédito: um meteorito queimava as plumas da atmosfera, decepando verticalmente a paisagem.

Aderindo na trilha novamente, a floresta se fechou na clausura, tal fosse um predador de arapuca. Assombrada melancolia nos sufocou quando os feixes de luz, evasivos, diluíram-se completamente na vegetação jurássica. As titânicas plantas lenhosas intrincaram umas nas outras, numa simbiose para garantir o absolutismo das trevas.

- Estamos na Garganta do Holocausto, onde o dia nunca nasce e Lua nem estrelas brilham – destacou o guia – Tomem cuidado!

Silêncio funerário reprimiu minha audição. Cantigas de pássaros e demais hinos da diversidade animal cessaram, se supondo que as espécies foram extintas na última hora.

- Não façam barulho, do contrário atraíram os habitantes destes lados – ressaltou a bússola canina – E não vão querer ser autores de tal feito!

Bonfim se ergue do banco, alongando o físico e articulando as câimbras.

- Escutem meus caros! – berrou o anfitrião – Agora vão ter um gosto da autêntica interatividade de minha cria, o ápice supremo do realismo jamais aproximado!

- Por favor senhor, mantenha a calma, está arriscando a vida de todos aqui presentes, inclusive a sua – alertou Plutão.

- Venham a mim infantes da outra dimensão! – gruiu Bonfim, alucinado – Venham!

- Não é uma boa ideia senhor...

Violão vibra, dessa vez uma harmonia depressiva, nostálgica, arrastada e nauseante. As imagens começam a convulsionar, trêmulas e anti-simétricas, distorcendo as linhas como um sismo sensorial. Efeito semelhante contrai os personagens 3-D fora da tela, que debandam suicidamente.

- Este fenômeno só tem uma tradução – deprimiu-se Plutão – O “Surto da Cripta” está nas redondezas.

Um tremor desvirtua o soalho do palco senil aquém de Plutão. Nasce uma corcova de tabuas sob as patas do quadrúpede. Madeira pútrida e colônias de cupins são estilhaçadas, jorrando projéteis nas primeiras fileiras.

Protegi-me cruzando os braços em escudo na cabeça, mas arredei as pálpebras a tempo de ver o horror latente. Uma força sobrenatural arrastou Plutão com violência para o esôfago da recém-formada cratera, ouvindo-se seu chiado descer profundo na fenda. Acredito tal fato ter tido pouca relação com as leis da gravidade.

O que meu cérebro definiu como sendo uma nadadeira abissal, talvez uma estrutura óssea miscigenada por minérios brancos, bifurcou a cratera. Era um espesso “ferrão” circunflexo – encurvado para trás – donde manifestava disposições espinhosas menores no ângulo inferior, como uma faca torta.

Semelhando-se a uma serra em marcha, corta o palanque ao meio e parte em colisão para cima dos executivos. A lâmina errante desintegra as acomodações em velocidade supersônica, esfolando três metros de distância do meu assento.

O sabre atravessa o cinema numa onda sinuosa de detritos – estofados, ladrilhos e encanamentos arremessados em uma tormenta de varreduras. Manobrava na cólera de um tubarão para apanhar as presas de terno e gravata.

Inicia-se a chacina de chefões do entretenimento: gritos e pânico foram as últimas lembranças jazidas nas sepulturas da classe burguesa. Escuto o rugido do monstro subterrâneo, permeando o solo e estremecendo meus tímpanos.

Conferindo o massacre, pude delinear a criatura. A boca estendia-se cinco metros à frente da nadadeira, mantendo constante o método de abate: sugar a vítima para o subsolo e assim devora-la, nunca expondo detalhes fisiológicos no ataque.

A besta “surfava” no âmbito, quando disparos súbitos o ferem diretamente na anatomia enterrada. Bonfim, pistola 9mm em vanguarda, parte para uma contraofensiva balística, fitando da outra extremidade.

- Cometi um erro hoje, e está na hora de reverter meus pecados...

- O que está fazendo? – sussurrei – Vai atrair a coisa para cá!

Ele se deu de surdo e continuou atirando. Mas o heroísmo não surte reação no alvo, que direciona seu curso para a tela, ansiando a ingestão de Bonfim. O predador desvanece o terreno ao acelerar a locomotiva.

O inventor dispara pela última vez antes de encontrar os trituradores dentes-ceifa saltados da mandíbula imergida, dando o suspiro final ao puxar o gatilho.

Distingui a boca alongada e de envergamento curto, idêntico ao crocodiliano asiático gavial. Pele enegrecida e fragmentada, no estilo de uma superfície argilosa seca, onde brotavam estrepes curvas. Inexistência de olhos. Abocanhando Bonfim, a fera submergiu.

A arma de fogo é jogada na minha fileira, quatro assentos de longitude. Ajuda divina ou um empurrãozinho para a autodestruição, em todo caso coletei a 9mm.

Desdobra um sossego atormentador. Não ouço a criatura cavoucando ou móveis sendo arremessados. Subo pelos restos da escadaria, correndo até a saída. No negrume, tropeço numa perna desconjuntada, ensanguentando minhas roupas. Quase choro com a terrível surpresa.

Um tremor abala as solas dos meus sapatos, se propagando pelo corpo. Tinha ciência do que estava por vir. Abriguei-me em uma poltrona adjacente, comprimindo os membros para camuflá-los. A trepidação sobe de escala, e sinto o impacto. Minha poltrona é lançada no ar, imitando uma cadeira injetável.

Voo de embate a uma das paredes laterais do cinema, esmagando minha saúde no concreto da estrutura. Caio debruçado no chão. Não soube dizer se minhas pernas foram quebradas ou se virei paraplégico, meus membros inferiores não respondiam.

Checo o pente da arma, restava um cartucho. Uma ironia do destino, me impelindo a explodir meus miolos enquanto era tempo. Aguço meus órgãos ópticos na escuridão. Lá estava a anormalidade, com sua fisiologia ofídica, desenterrada e salivando na minha cara. Talvez pensando que eu estivesse morto, mas logo descobriria. Teria que escolher: balear meu encéfalo ou...

Um violão voador colide na cabeça da assombração, que inverte seu cuidado no ângulo da tela.

- O projetor... – suspirou Plutão, se esforçando para manter o equilíbrio. Gangrenas e diversas mortificações afloravam em seu couro – Atire no projetor!

Olho para cima e vejo o glóbulo luminoso, incidindo seus raios satânicos no quadro. Brando a 9mm, mão e dedo firmes. Foco-me no brilho, só teria uma chance. Atiro. A bala atravessa a máquina, que cisca antes de apagar. Aleluia! Finalmente, sobra só eu e trevas no cinema.

O MÉDICO E A PACIENTE

Chamam-me Leonardo, e sou advogado, mas assim como dou para as leis, existem os que dão para a engenharia, outros para a arquitetura, outros para a literatura e a escrita... Mas todos nós temos algo em comum, na doença precisamos de um médico para cuidar da nossa saúde e para nos dar mais anos de vida. De sorte que o médico pertencente a cada um de nós habita um lugar muito obscuro, quase sempre muito escondido, no nosso interior. Mas há tempos atrás, eu descobri onde ele morava.

Era num casarão assobradado de palafita no meio da roça, no meio do nada, em que a energia elétrica não chegava e onde a luz de lá na noite, só existia quando o clarão da lua penetrava pelas janelas daquele sobrado ou com as luzes das velas e das lamparinas, que o nosso médico acendia.

Certa noite, ele voltara pra sua casa já tarde da noite com a sua paciente desmaiada entre os braços. E o desmaio não era casual, aconteceu à base de muitos calmantes.

Mas o nosso médico não tratava de seus pacientes enquanto eles estavam adormecidos, pois o seu curso de medicina em seus sonhos durante as suas curtas noites de sono não lhe ensinou isso, nem tampouco que para tratar dos pacientes, eles deveriam ter alguma enfermidade.

Muito pelo contrário, os seus pacientes deveriam ser tratados enquanto acordados, e antes mesmo de qualquer moléstia. Pois os tratamentos deles não visavam proporcionar a saúde que a maioria dos médicos almeja aos seus pacientes. O nosso médico não via na saúde dos corpos como sendo coisa positiva. Mas para ele as coisas deveriam funcionar à sua maneira. Era assim que aprendera nos sonhos!

E começado o tratamento, a nossa paciente foi deitada em sua maca metálica e resistente forrada por um lençol branco que não era a comum usada pelos médicos que geralmente conhecemos, mas daqueles que habitam os nossos subconscientes e que muitas vezes não temos noção de que tais possam existir dentro de nós mesmos. Esta era redonda com 4 metros de diâmetro e tinha vários pares de furos, alinhados como os extremos de uma reta, onde se encaixaria os membros de seu corpo. Um par para o pescoço, um par para os pulsos dos braços, um par para prender as pernas pelos tornozelos, um par para a cintura, um par que ficava mais ou menos entre os peitos e a cintura e outro para a genitália, caso o paciente da noite fosse um rapazinho, o que não ocorrera nessa noite. Por cada furinho existia uma corda onde ela saia por cima da maca, prendia o membro do paciente e saia por debaixo pelo outro furinho, que no final se amarrava em laços rígidos e quase impossíveis de serem desfeitos. E assim, o nosso médico tirou-lha as roupas que eram em tons claros e quase desbotados e os sapatinhos cor-de-rosa de brilho acentuado, e logo em seguida a nossa paciente foi fixada naquela maca incomum que só ele tinha, ao lado de Bonzinho, o cachorro de raça dobermann do médico que estava amarrado de forma a quase encostar o focinho sobre a paciente para sentir-lhe o cheiro da carne viva mais de perto. A vestimenta branca do médico contrastava com a negrura brilhante da pelagem de Bonzinho com a luz da lua que entrava pela sala e demais cômodos da casa.

Fora tapada com suas próprias meias enroladas a boca daquela infeliz. Não era uma, pois não bastaria para que os gritos fossem abafados. Tanto é que a mão daquele médico teve de primeiro enfiar a primeira meia enrolada de modo a quase tapar-lhe a epiglote e tirar-lhe o ar. Mas de modo a não tirar-lhe a vida antes de realizar o seu prazer que seria tratar de forma peculiar a paciente ainda viva. Pois o prato bom se come ainda quente. E era assim que o nosso médico pensara desde que as suas aulas de anatomia com cadáveres gelados ou ainda em formol o enjoaram. Que se devia operar o paciente ainda acordado e sem auxílios de anestesia...

A nossa paciente acordava. Nossa, pois somos parte do pensamento daquele médico, e o que irá acontecer faz parte das minhas e das suas idéias. O nosso médico não age apenas por vontade própria, mas guiado pela vontade mais íntima ou inconsciente de cada um de nós.

E fora assim que passadas algumas horas, a nossa paciente acordara. Seus gritos surdos não atravessavam as meias de sua boca, nem os seus membros poderiam se mover. O nosso médico fora até a cozinha procurar uma de suas facas para mais aquela cirurgia que só ele sabia como fazer. A luz da lua entrava pela janela da cozinha e iluminava-lhe um lado de sua face. Abriu a gaveta vagarosamente, pegou a faca e voltou até a sua sala de cirurgia silenciosamente. Mas o nosso médico não gostava de facas amoladas daquelas de cortar carnes, ele preferia as grandes facas de serra que muitos usam para cortar o pão, mas que não é muito eficiente para as carnes. Segundo ele, quanto mais a carne demorasse a ser cortada melhor ficaria a sua cirurgia naquela que era a nossa paciente!

O máximo que a nossa paciente conseguiria fazer era retorcer o pescoço de um lado para o outro e suar de tensão desesperadamente. Mas aquele médico sabia que esses atos da vítima pré-cirurgia eram comuns e não demorou muito para que começasse a exercer o seu ofício. A faca encostou-se aos mamilos daquela nossa paciente, que não mais poderia chegar a fazer brotar leite e com as pontas dos dedos polegar e indicador direitos, o nosso médico erguia os bicos dos seios dela e vagarosamente ia deslizando a faca em sentido horizontal para frente e para trás de modo a fazer um trabalho eficiente, e de seio para seio, eles perderam o seu ar de naturalidade e os bicos dos seios foram jogados ao Bonzinho, que apreciava os seios como se fossem a entrada do prato principal.

A nossa paciente estava presa naquela maca e nada poderia fazer a não ser gritar seu grito que se fazia mudo por causa daquelas meias... Malditas meias que tentam abafar a dor daqueles que precisam gritar!

E o médico deslizara para as partes inferiores do corpo daquela moça e como de costume, começara pela perna do lado direito e com a faca de serra fazia os movimentos de vai-e-vem sobre o tornozelo de modo a arrancar dela os seus lindos e delicados pés que só as mais moças poderiam ter. Do calcanhar direito, ele passou para o esquerdo. A faca não era das afiadas, nem das de cortar carne, o que dificultava um pouco o trabalho do nosso médico, assim como a paciência e a agonia daquela moça. E por que não dizer a agonia de espera do nosso salivante Bonzinho, que só se alimentava nas noites de plantão de seu dono.

O sangue vermelho rubi começou a escorrer e o médio deveria fazer o seu trabalho o mais breve possível, se bem que a faca não o ajudasse como eu já lhes mencionei.

Foi a vez do pulso direito, que era cortado enquanto as pernas sem os pés da moça se mexiam e se remexiam por vontade da paciente, numa tentativa desesperada de fugir, mesmo sabendo que se caso conseguisse se soltar daquelas cordas, pouco ela conseguiria se mover... Afinal, a falta dos pés, a dor que não era das suportáveis e o líquido avermelhado saindo de suas pernas poderiam fazê-la escorregar e até mesmo a fazer engasgar com o seu próprio sangue. O braço esquerdo o doutor deixava para o final.

Do pulso direito, o medicou começou a cortar pouco abaixo dos joelhos das pernas, num movimento de vai-e-vem constante que por mais forçado que fosse, era demorado e desgastante. A culpa era da faca. Enquanto a faca cortava a carne daquelas pernas e um dos lados que o corte separava teimava em voltar para trás, o outro resistia em ficar pela frente.

As sobrancelhas da moça estavam apertadas uma contra a outra ao mesmo tempo em que a sua testa se fazia em dobras. E os seus olhos, ora arregalados quase saltando de suas órbitas. Ora fechados, quase colando as suas pálpebras umas nas outras. E a expressão da moça ganhava mais uns 20 anos de idade, que ela não chegaria a ter...

A força para o grito embora presente e incapacitada devido aquelas meias que sua avó lhes dera meses atrás, era agora reaproveitada de modo a tentar se desfazer daquela dor, seja numa fantasiosa anestesia que o nosso médico não teria para ela, seja tentando deixar de pensar em tudo. Mas se a sua força interior não conseguiu produzir um efeito sonoro de dor, ela também não conseguiu anestesiar, nem fazê-la deixar de pensar naquele instante...

E enquanto os seus cotocos se debatiam sobre a maca lançando sangue a metros de distância contra as paredes e demais móveis da sala - que o médico julgava ser a sua sala de cirurgia - e Bonzinho se alimentava com as partes que lhes eram jogadas, o médico arrancara da paciente as suas bochechas com a sua faca de serra de cortar pão.

Então, fora a vez dos lábios da boca... A paciente já não queria mais viver. O importante era deixar de sofrer. O necessário agora era morrer...

Seus olhinhos de moça que estavam fechados foram abertos forçadamente pelo médico. Ele furou os olhos da paciente e girou a sua faca tanto em sentido horário quanto em sentido anti-horário, e arrancou-lha as orelhas e o nariz, que foram arremessados à Bonzinho. Seus olhinhos não mais poderiam brilhar, nem demonstrar qualquer sentimento ou emoção... Fosse de alegria, de terror ou de tristeza. A operação da paciente estava quase que concluída, e o sorriso no rosto do nosso médico era evidente. A moça, já sem poder exercer sua expressão facial, fazia o médico crer na realização pós-operatória dela.

Ela não demonstrava sinais de entristecimento, seus olhos estavam furados e mortos. Suas bochechas rosadas deram lugar a dois enormes buracos em sua face, das quais se poderia ver as suas meias brancas enroladas. A sua falta de lábios obrigava-a a mostrar os dentes. Por falta de outras provas, o nosso médico viu na paciente sinais de grande felicidade.

Por fim arrancou-lha a cabeça e o braço dela por inteiro, que foram arremessados a Bonzinho, que já se alimentava de gula. Picotou-lha o corpo já morto, dessa vez com o auxílio de uma foice e de uma enxada que buscara em seu porão, logo depois que a moça havia virado cadáver.

A carne se esfriara e a operação perdera a graça, o nosso médico deixara de ser médico naquele instante. Quem sabe dias depois ele volte a exercer a sua prazerosa profissão... E em sua realização profissional curar também a si próprio, transferindo sua tensão, sua raiva, seu desespero, suas mágoas, suas angústias, suas desilusões e suas tristezas aos seus pacientes. Que na cura deles, curava mais a ele mesmo. Assim se fazem os médicos...

GUERRAS

I. Além do calor repentino — que surgia do nada, parecendo rastejar pela fenda da porta —, havia ainda o choro irritante do filho. O homem queria saber aonde fora parar a fatia do seu amor pelo bebê. Digo, pois não era a primeira vez que pensava — e considerava — a morte do filho como único modo de calá-lo, porque se tornava quase impossível ouvir qualquer coisa em seu rádio, quando o garotinho decidia armar um berreiro. Pelo amor de Deus, ele não sabia como aquele rádio era simplesmente importante! De vez em quando, a execução do plano apetitoso que via em sua mente consistia em afogar o pranto da criança debaixo da superfície fofa de um travesseiro; afogar as suas lágrimas e todo o resto que ficasse no caminho da almofada. Se havia após o pensamento o aflorar de sublevadora culpa? É claro que sim, porém foi mais forte nas primeiras semanas. A culpa, por sua vez, fora agora arrastada fora do carpete de suas idéias germinantes, feito um indesejável móvel pesado, e substituída pela plausibilidade.

Mas antes que você crie uma imagem precipitada do pai, esse lampejo revoltante só causava sombra na sua cabeça quando o choro do filho tornava-se irritante e perigoso — no fim das contas, amigos e vizinhos, o pobre judeu holandês e sua família escondiam-se dos soldados alemães! E qualquer rumor que os pudesse denunciar, qualquer ruído, qualquer nada, o instinto dizia que ele deveria ser suprimido. E passado o berreiro, o homem procurava desintegrar a idéia; odiando-se pelo grau de perversidade que ela continha.

Era inegável que grande quantidade da sua angústia corrosiva vinha dos alemães. Quando Hitler subira ao poder, por volta de 1930. Em 1943, a S.S. mandara uma carta ao holandês, convocando-o para o trabalho numa fábrica de Munique, na Alemanha. Sabia ele no que acabaria: ele e todos os judeus que recebessem seus chamados seriam deportados a campos de concentração. Então, em uma semana, ele e a família já estavam instalados em cima de um consultório dentário, que pertencia ao dentista e amigo da família, Dr. Frencken. Escondidos, comendo sobretudo batatas e o que quer que a misericórdia dos amigos que sabiam onde se metiam os quisesse dar. Mas o que prevalecia era a maldita batata, claro. Havia um barril gordo só de batatas — muitas delas esverdeando-se em sua podridão em andamento.

A inflação e a certeza de que nela afogar-se-iam seus investimentos. Fora do mercado negro, meia libra de carne na Holanda quase alcançava o preço de 300 florins. A intervenção inglesa que, com o tempo, parecia se tratar não mais do que puro sonho. Batatas podres. Um esconderijo onde as luzes deveriam ser apagadas antes das seis, a fim de afastar qualquer suspeita na vizinhança. Um filho que sabia ser desagradável. O calor misterioso (não podia apenas se tratar do verão. Seu calor não despenca, como despencava este aqui). Um casamento já em avançado estado de decomposição, exalando todos os gases fedidos que um defunto tem o direito de exalar. Coisas demais para uma cabeça que só há pouco começara a ficar grisalha...

Mas ele ainda tinha o seu rádio. E a BBC. E mesmo sabendo que era muita imaturidade de sua parte, esperar salvação da parte dos ingleses era única alternativa que lhe restava.

Por isso, toda tarde arrastava para perto do aparelho uma cadeira, dobrava os braços espaçosamente sobre a mesa e deitava o queixo em sua superfície de madeira. Deixava os alto-falantes transportarem-no em suas esperanças cremosas. Esquecia-se da família e que se enterravam num buraco escuro — às vezes, via-se deslizando os dedos nos contornos do rádio, nos sulcos laterais dos botões e absorvido pela luminosidade amarelo-âmbar alienígena do dial.

Mas hoje, porém, de uma só vez, o filho chorou e aquele calor fantasma o atingiu.

Oh, Deus, como seria bom poder acabar com as duas coisas juntas!

II. A mulher correu tomar nos braços o filho que chorava — sabia como o marido ultimamente tornara-se irritável com pouca coisa. Nas circunstâncias atuais, seria compreensível uma alteração brusca nos ânimos; ela estava de acordo, quanto a isso. Mas nada explicava o comportamento explosivo dele, o qual ela nunca poderia imaginar habitando em seu próprio corpo. A mulher não viu tanto transtorno estagnado nem quando ele recebera da S.S. aquela carta: o esposo pareceu mais triste que irado. No entanto, todo o resto podre despontou após sua obsessão em ouvir aquele rádio — de fato, ela não o via somente ouvindo, mas devorando aquela porra mecânica.

Correu, e se viu surpresa por constatar como o calor em nada influenciava sua pressa. Pegou o garoto nos braços — era tão pequeno e desprotegido, para um bebê de ano e meio —, e ao analisar o porquê de sua pressa, quase se colocou a chorar também. “Oh, Deus! Por que o Senhor permitiu que os sentimentos dele por nós esfriasse dessa forma? Não bastava já a provação de uma guerra, bombas explodindo e sacudindo todo o prédio, e agora nos lança no colo mais este ‘teste de fé?”, ela se viu pensando.

O garoto queria apenas comer — aliás, era hora de todos comerem. Prato de hoje: batatas, alface e espinafre. “Até quando?”, seguiu outra pergunta mental sem resposta. O suor porejava pontos cor-de-fogo pela testa do menino; gotículas salgadas iluminadas pela luz emitida do rádio. Ela também suava, e logo rodas escuras de suor se formariam em cada braço. Como fizera calor, e tão de repente! Se pudesse ao menos abrir as janelas.

Olhou na direção do marido, e curiosamente parecia não se importar com o calor ou nada à sua volta. O traseiro colado na cadeira e o corpo inclinado para frente, os braços um sobre o outro e a cabeça apoiada no queixo sobre a mesa — e olhos vidrados na droga do rádio. Como ela odiava aquele rádio!

Perguntou, hesitante no início:

— Querido... a Inglaterra pretende inva... — Mas antes que ela terminasse, o homem fez um gesto rápido com a mão, para que a mulher se calasse. Um gesto provocativo, que agulhou o coração da esposa. Ela colocou a criança novamente em seu carrinho de bebê e girou sobre os calcanhares.

Prepararia só dois pratos, e comeriam ela e o filho. O marido e seu rádio preferido que se fodessem juntos!

III. Basta chorar, e alguém me pega no colo. Moeder o faz mais vezes. Papa parece divertido com seu brinquedo novo — eu tenho os meus, eles parecem mais legais. Estou com fome. Moeder me empurra para a cozinha. Eu chorei, ela me ergueu, me desceu outra vez e me trouxe para a cozinha. Simples. Às vezes acho que podíamos conversar assim pelo resto da vida: eu chorando, ela me entendendo. Algumas vezes, quero dizer qualquer coisa, do jeito deles, mas só sei resmungar. Isso é chato. É bem chato! Mesmo assim, tenho a impressão de que Moeder é a única que entende os meus gritinhos.

Estou todo molhado; lá perto de Papa está quente, até mais quente que aqui na cozinha... Hum, o cheiro que vem do fogão é gostoso! Já sei o que teremos hoje! Aquela coisa que Moeder amassa até ficar macia! Sim, é bem gostosa! Eu já me esqueci o nome — Moeder e Papa repetem o dia inteiro... Batata! O nome da coisa redonda que a gente amassa é batata!

Eu adoro batata!

Como isso todo dia, e não enjôo.

Desde que estamos aqui — por que estamos aqui, hein? —, é o que mais comemos.

Acho estranho aquela garota não comer nada do que Moeder faz. Tem um cheiro tão bom!

A menina de vestido escuro sempre chega quando faz calor. Eu não escuto nenhum barulhinho, só vejo quando ela já está aqui com a gente. Ela não é minha amiga. Tenho medo dela, na verdade... Hoje, ela chegou e não saiu de perto da janela. E, como faz sempre, trouxe com ela este calor. Papa e Moeder não conversam com a menina.

Por que ela carrega junto o calor? Por que meus Ouders não falam com a menininha, como se não a enxergassem? Eu a enxergo, e ela é bem branca. Da cor da camisa de Papa...

Huuum, deixa isso pra lá, Moeder já amassou minha batatinha e vem trazendo pra mim!

Meus papais são tão bons, eu gosto muito deles.



IV. Quando se está enclausurado, que acontece lá fora aos poucos passa a influenciar menos lá dentro — e num instante, começamos a ver o exterior como outro universo, espaço deslocado e inalcançável. Assim era com a família Philips. Alexander Philips não desgrudava o ouvido de um rádio: mal vestido, não tomava banho ou fazia a barba há dias. O pequeno Johan entretinha-se com o que tinha em mãos, fazendo até mesmo do objeto mais sem graça um artigo de diversão. Além disso, a menina que passou a ver (vestidinho preto) estimulava a cada dia seu ainda não tão desenvolvido raciocínio. (Só ele a enxergava, e talvez no fundo do seu coraçãozinho pulsante o soubesse.) Já a mãe ficava a julgar quanto tempo agüentaria ver batatas. Marjolein e o marido não trepavam há quase nove meses. Certa vez, a mulher escutara em uma de suas distantes aulas de pintura clássica que não havia terror maior que podar os sonhos de uma criança — não sabia por que escutara aquilo ali exatamente em uma aula de pintura. Mesmo assim, a lembrança ainda não terminara: a mesma pessoa dizia que deste, ou de qualquer outro universo ainda não descoberto, a pureza de uma criança era o elemento mais limpo idealizável, talvez a essência mais deslumbrante composta por um criador (se algum existisse, e isso agora fazia grande diferença à mulher). O pensamento encaixou-se à realidade, e com assombro descobrira que Hitler e sua escória armada faziam isso: decapitavam sem pena alguma o futuro de seu bebê. Cometiam a grave heresia de corromper a maior pureza do universo.

Enquanto pensava, enquanto seu marido absorvia-se ainda mais as emissões roucas de estática do rádio, enquanto o pequeno bebê Philips, comendo suas batatas, podia enxergar aquela garota-fantasma voltada à janela, soldados da Gestapo aproximavam-se do prédio.

De repente, um objeto incandescente voou rapidamente à janela dos aposentos: o coquetel molotov atingiu o vidro e explodiu contra sua superfície fria, mas conseguindo enviar línguas de fogo e muitos cacos para dentro do esconderijo dos Philips. “Há judeus dormindo aqui!”, uma voz feminina atravessou o buraco da janela quebrada. Sr. Philips teve apenas tempo de se afastar, carregando o rádio debaixo do braço, e então correr para junto da mulher, que alimentava o filho na mesa da cozinha. Esta, por sua vez, já havia notado a coisa toda, e em prantos removia o filho do seu carrinho de bebê. Estavam acuados como ratos, sem saber o que fazer. De início, o correto foi afastar-se das cortinas ardentes e do piso, que começava a ser consumido por aquela alergia alaranjada.

— Não... não vá... não vamos sair daqui! — disse um Alex Philips transtornado e ao mesmo tempo entorpecido pela irracionalidade. Correu e protegeu a mulher e o garoto contra seu corpo: o rádio metido entre eles.

— Tire isto daqui! — Marjolein num tapa com a mão livre enviou o aparelho tagarela contra o piso. Ao quebrar-se, todas suas vísceras faiscantes e eletrônicas se fizeram ver. O marido a fitou com olhos descrentes. — Tente pensar com a cabeça, seu idiota! Tente encontrar uma saída, e esqueça a droga desse rádio!

Não houve, porém, saída alguma. Agora, o calor ali dentro era real. Os gritos furiosos e animalescos vindos da calçada, coisas como “cacem esses judeus porcos!”, eram reais. O pavor era real. Não. Não ocorrera ao homem solução alguma; e mesmo que quisesse, mesmo que decidisse pensar, os soldados nazistas com um estrondo já haviam invadido o cômodo. “Carregam seus brinquedos”, a mente de Johan figurou, divertida.

Sim. O calor era real. Dessa vez, não invadira o apartamento num sopro sobrenatural, acompanhando outra presença sobrenatural. De alguma forma, Marjolein, levada pelo braço por um dos soldados armados, fez uma conexão entre ambas as coisas: passou a crer numa conexão.

A última coisa que Johan soube naquela noite foi que, enquanto todos eram removidos de seu apartamento, a garotinha de preto já o havia deixado antes. Já no outro dia, a primeira coisa que soube, que discerniu nos lábios chorosos do pai, antes de serem separados e o ver pela última vez, foi: “Campos de concentração.”