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quarta-feira, 27 de maio de 2009

HOMENS NÃO CHORAM

Observo com atenção o apartamento onde entrei às escondidas. Móveis de qualidade e decoração moderna dão ao lugar uma atmosfera de sofisticação. No quarto, o ar é perfumado por uma leve fragrância de lavanda, também presente na cama king size arrumada com lençóis de cetim branco. Um guarda-roupa grande, cômoda e espelhos completam o ambiente.

Um laço
de amargura estrangula meu coração quando vejo com olhos úmidos o lugar. Ao escutar vozes no corredor do prédio e a maçaneta da porta do apartamento girar, dou-me conta de que fiquei tempo demais por ali.

Preciso me esconder. Olho em volta e vejo o guarda-roupa aberto; pulo para dentro dele, empurrando as roupas penduradas, e fecho a porta. Dentro do móvel escuro, não consigo ver coisa alguma lá fora, mas, de qualquer jeito, sei de quem são aquelas vozes.

A feminina é da minha esposa.

A masculina, do seu amante.

O tom alegre da conversa entre os dois logo se transforma em sussurros apaixonados, seguido do ruído de roupas arrancadas dos corpos cheios de lascívia.

Minhas lágrimas estão prestes a irromper, mas eu me controlo como sempre fiz na vida.

Pois homens não choram.

Essa foi uma das lições que aprendi quando criança com meu pai: por maior que fosse o motivo, um homem de verdade não chora.

E naquele mesmo dia, ao lado da minha mãe sempre sorridente, e à beira de um riacho onde os bois da nossa fazenda pastavam – chamado jocosamente pelos peões de “córrego do capado” – meu pai me ensinou outra lição.

O maior bem de um homem é a sua honra.

E quando maculada, só o sangue pode lavá-la.

Ele falava por experiência própria: todos na cidade sabiam o que aconteceu com minha mãe, então uma moça recém-casada e infeliz, e o capataz com quem se engraçou. Só anos depois fui descobrir a origem daquelas cicatrizes que retesavam os músculos do rosto dela, de modo que parecia sorrir mesmo quando triste, e o porquê do riacho ter aquele nome inusitado.

Na cama lá fora, as molas do colchão rangem sob o movimento do casal.

- Mais rápido! – minha esposa implora ao rapaz grande e de pele bronzeada. O pedido é prontamente obedecido: o colchão passa a guinchar com força, conforme ela é penetrada.

Seus gemidos de desejo acompanham o ritmo.

No guarda-roupa, levo a mão ao cós da calça onde carrego o revólver, presente de casamento do meu pai para o único filho.

Lava-honra. Era assim que ele chamava a arma de fogo.

- P-para – agora escuto minha futura ex-esposa dizer num tom de urgência– Para que tá doendo!

O colchão continua a guinchar feito um animal selvagem, enquanto o amante grunhe, como se próximo do clímax.

“Chega”, digo para mim mesmo. “Preciso recuperar o que ainda resta da minha honra”.

Agarro com firmeza a coronha da arma e a retiro da cintura. Sinto o peso dela, carregada com os oito projéteis que em breve encontrarão seus alvos.

É quando noto o silêncio sepulcral no quarto. Nenhum gemido de prazer, nenhuma respiração ofegante, nenhuma mola rangendo.

Nada.

Com a arma em punho, abro a porta do guarda-roupa e pulo para fora.

Lá esta a minha esposa no centro da cama enorme. Rosto enterrado no travesseiro, barriga para baixo, pernas escancaradas num ângulo estranho. Os lençóis de cetim estão empapados de vermelho.

O cheiro de lavanda sumiu; algo podre sufoca a atmosfera do quarto.

E então vejo seu amante. Ele pouco lembra o jovem bronzeado de outrora.

Cinza agora é a cor da sua pele. O corpo, nu e sem pelos, tem o dobro do tamanho, com músculos inchados e lustrosos. Protuberâncias longas e pontiagudas cobrem ombros, costas, cotovelos e dorsos das mãos.

Ele se volta lentamente na minha direção. Seus lábios, arreganhados num sorriso grotesco que ocupa mais da metade do rosto, mostram uma gengiva negra atulhada de dentes graúdos e serrilhados. O nariz não passa de duas fendas escuras, enquanto os olhos são de um amarelo pútrido; o resto da face está salpicado de sangue.

Da virilha, sobressai um apêndice comprido, grosso e rígido, repleto daquelas mesmas protuberâncias da base até o topo. Algo vermelho e viscoso pende nele.

São as vísceras de minha esposa.

Recuo, adrenalina correndo pelas minhas veias, e reajo instintivamente: disparo o revólver.

Mas o gesto é muito lento. Antes que meu dedo encoste no gatilho, aquela coisa pula sobre mim, desferindo um tapa com as costas da mão.

Sou arremessado contra a parede e desabo no chão do quarto. Uma dor pulsante no pescoço acompanha as batidas do meu coração; sangue escorre aos borbotões do talho aberto na minha artéria.

O que antes foi o amante da minha esposa se aproxima, observando-me da cabeça aos pés com curiosidade. Segundos depois, sua língua escura e bifurcada desliza como serpente pela boca enorme e estala no ar, antes de lamber com avidez os lábios manchados de escarlate.

Sinto uma vontade imensa de chorar ao ver a morte chegar, mas me mantenho firme como aprendi com meu pai. Só espero que aquela coisa não seja necrófaga ou – pior ainda - necrófila.

Pois não posso perder o pouco que resta da minha honra.