O casarão ainda era mais escuro à noite a ranger nas sombras. Rod sempre apressava o passo quando caminhava na estradinha que levava até lá. Hoje por acaso olhou com atenção o contorno da ruína lá longe. Sem duvida sentiu algo como um sussurro a chamá-lo lá de dentro. Cogitou, arrepiando-se, se não estaria ouvindo demais.
Aquele velho sobrado parecia respirar solto ao vento. A neblina já se acostumara a cobrir o telhado que um dia fora de uma cor brilhante. Em lugar disso, agora, manchas escuras e secas se sobressaiam, destacando nas sombras, a balançar, as destroçadas janelas abocanhadas pelo vento.
Uma longa enfermidade aquele medo. Suposições de velhas estórias que já haviam virado lendas congelavam seus pensamentos; o eriço permanecia em seu corpo. Mudou o rumo de suas idéias ao se afastar do lúgubre cenário.
Seu irmão morrera numa guerra. A face de Rod agora transfigurava rancor, ainda mais sentindo seus pés se sujarem na lama. Como não prestara atenção? Será que acertaria o culpado da morte do irmão com uma bomba enviada pelo correio? Não. Rod havia saído apenas para comprar cigarros.
A sombra da noite serve de coberta para passos falsos, principalmente quando um espectro soturno esgueira-se em direção à estrada.
Rod já alcançara a porta do posto de gasolina, sentindo-se mais confidente ali, mesmo quando o motoqueiro barbudo e cheio de tatuagens deixou o recinto, batendo a porta ignorando-o.
Atrás do balcão o dono do posto, sentado com as pernas a descansar em cima de uma mesinha, ouvia um rádio que tocava baladas água com açúcar. Ele inquiriu Rod, num tom indiferente o costumeiro:
-Em que posso servi-lo?
Se havia alguém que conhecia tudo por ali, era aquele homem. Rod apontou a estante onde os maços se deitavam:
-Quero um Ruana. Algo novo aconteceu por aí?
O dono levantou e pegou um maço em cima da estante:
-Não nada novo. Só dizem que a filha do padeiro parece ter fugido de casa. - Diminuiu o tom da voz e quase segredou: Parece que ainda é bisbilhotice viu. Foi o último comentário que ouvi por aqui.
-Também o pai dela não deixa ninguém chegar perto da moça... Será que se foi sozinha ou acompanhada?
-Só saberemos a verdade amanhã...
Rod se despediu do dono do posto e voltou para sua casa, evitando no caminho da volta passar na estradinha que dava no velho sobrado, embora o caminho ficasse mais longo. Seu olhar procurou a noite estrelada e a lua a se encher sorrindo no céu.
Mal chegou a sua casa, onde morava sozinho, foi direto para o quarto. Nem entendera bem o motivo de sua saída àquela hora da noite para ir buscar cigarros. Precisava se ver livre urgentemente daquele vício que o fustigava há anos. Sempre se prometia, mas, a decisão final do ultimo trago nunca passava de pensamentos.
Rod deitou depois de algum tempo e sentiu o peso do sono tomar conta dele. O escuro do quarto o embalou no profundo ato de dormir. Em alguns minutos sua respiração demonstrava que não seria acordado por nada, quando sentiu algo tocar-lhe o ombro. Sentou lentamente na borda da cama e viu ali, em frente a ele, Martim, seu irmão que morrera na guerra, envolto numa aura brilhante.
-Martim, o que faz aqui? Acabamos de receber a notícia. Papai e mamãe estão inconsoláveis.
Ainda abraçados, depois de tanto tempo, Rod ouviu a afirmativa de Martim:
-Há uma coisa Rod, que temos de resolver juntos, agora que voltei para casa.
-Recebemos a notícia de que havias morrido em combate... É melhor irmos avisar nossos pais...
-Deixe isso para amanhã quando acordarem, eles precisam descansar...
-Agora que acordei mesmo, é que vejo: você está aqui de volta... Deram uma notícia errada. É melhor que nos expliquem tudo direitinho, todos ficamos muito tristes. A alegria voltará.
-Bem, Rod. Vamos sair um pouco, quero saber das novidades.
Desceram a escada procurando fazer pouco barulho e abriram a porta para sair. Martim fazia algumas perguntas e Rod respondia ao irmão sem prestar muita atenção no caminho que tomavam.
Depois de algum tempo, Rod se viu de novo em frente ao casarão. Embora sentisse medo da construção, ao lado de Martim, o medo sumira e ele seria até capaz de entrar na ruína se este o chamasse. O que realmente veio a acontecer.
Já lá dentro, Rod notava as paredes enxovalhadas e descascadas do sobrado, quase não havia traço do tom pastel, a cor, que um dia alegrara o salão de entrada. A lua cheia deixava tudo coberto por sua claridade. Martim parou na subida do antigo elevador e de lá se encaminhou para a escada que levava ao segundo andar. Acenou para que Rod o acompanhasse.
Os quartos ainda guardavam a aristocrática aparência que tiveram um dia, quando a propriedade, pertencia a uma rica família de exportadores de algodão. Os donos haviam morrido há muitos anos, quando um grupo de plantadores rivais os assassinaram na intenção de monopolizarem o negócio algodoeiro. O crime fora tão sórdido e assustador na época, que a casa ficou entregue as intempéries da natureza e ao medo das pessoas. Ninguém tinha coragem de se aproximar do lugar, alegando que a noite, os sussurros e as vozes dos antigos donos pediam justiça e assustavam qualquer um que tentasse ali entrar.
Rod ainda andava no corredor observando o ambiente quando ouviu o som de uma pessoa chorando. Dali notou que Martim andava rápido, em direção a um dos quartos de onde vinha o lamento.
Ao chegar ao aposento viu sentada no chão, com a cabeça deitada sobre os joelhos, Gloria, a filha do padeiro, perdida em soluços. Muitas lâminas e vidros quebrados se espalhavam em volta da moça. Martim ajoelhou-se ao seu lado abraçando-a. Gloria levantou a cabeça e arregalou os olhos, atônita com a presença dele.
-M... Mar... Martim. O que faz aqui. Recebi a notícia e pensei em ir me encontrar contigo do outro lado, por isso vim para cá. Não adiantaria mais viver sem o seu amor...
-Este é o motivo que estou aqui Gloria. Em alguns momentos o espírito obscuro dessa casa virá te buscar para te levar. Mas, preciso que vivas e me guardes em teu amor lá bem dentro de ti. Rod veio comigo e irás com ele, seja lá o que aconteça aqui, entendeste?
-Mas, Martim, eu pensei que tinhas morrido e agora estás aqui... Quero ir contigo aonde fores...
-Por isso, irás sair daqui na companhia de Rod.
Um rugido vindo da rua se fez ouvir. Rod viu Martim se levantar e pedir a ele que levasse Gloria para fora do casarão. Rod pegou a mão de Gloria e foi descendo as escadas com ela. Quando estavam quase no salão um dos degraus quebrou e Gloria caiu, ao mesmo tempo em que um espectro negro entrava pela porta. Rod ajudava Gloria a se levantar quando o espectro chegou ao pé da escada. Os olhos fantasmagóricos brilhavam vermelhos no escuro da casa, quase hipnotizando a moça. Rod carregou-a nos braços, enquanto Martim avançava contra o espectro.
Rod e Gloria podiam ver Martim e o fantasma a lutarem quase se fundindo um no outro. O espectro emitia labaredas de fogo vermelhas e Martim as aparava com uma brilhante luz azulada. Rod ouviu quando Martim gritou:
-Leve-a rápido lá para fora.
Alcançando a porta, Rod e Gloria saíram para esperar por Martim. A luta continuava acirrada lá dentro, quando chamas começaram a crescer e tomar conta das ruínas. O fogaréu lambia a velha construção, enquanto Gloria chamava por Martim. Finalmente, este veio saindo da casa e alcançou o irmão e a namorada levando-os com ele pelo caminho de volta.
Pela manhã, Rod acordou e refletia no estranho sonho, que tivera com seu irmão na noite passada. Saiu para espairecer um pouco, se perdia em pensamentos, a julgar o absurdo da guerra e o que aquilo estava fazendo com todos na cidade.
Quando chegou a avenida principal, viu sua mãe abrindo a porta de vidro do armazém. Lá vinha ela saindo. Foi até lá para ajudá-la com os pacotes de compras. Por trás da tristeza daqueles olhos, Rod via um encantamento como se uma faísca de esperança houvesse brotado no coração dela. A mãe o abraçou e contou o a conversa que tivera com a esposa do dono do armazém.
-Rod, a filha do padeiro namorava Martim às escondidas. Quando soube da notícia da morte dele na guerra não suportou e saiu de casa, indo parar no velho casarão abandonado, lugar onde ia tirar sua própria vida. Não queria mais viver, até quando viu Martim e ele a dissuadiu de sua infeliz idéia. Ela contou que a pedido dele veio andando com vocês de volta para casa. Enquanto isso o velho casarão ardia em chamas depois de Martim lutar e vencer um espectro vindo das sombras. Gloria está na casa dos pais agora e ainda chora. O tempo a mostrará como tudo virá a ser... Os bombeiros nos disseram que nada sobrou da velha construção. Quando lá chegaram para apagar o incêndio, uma estranha luz azulada pairava envolvendo as cinzas que sobraram.
Estive lá sim mãe, em sonhos. Pensou Rod, enquanto guardava as sacolas na mala do carro. Uma lágrima escorria em sua face. De certeza Gloria aguardaria sempre a primavera, como pedira Martim ao se despedir de ambos.
quarta-feira, 13 de maio de 2009
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Legal mas não gostei do jeito que ele falou do irmão logo de começo,parece meio forçado,e a menina tinha que estar grávida no fim para dar um clichê maior,e não somente um clichê de ponta única dele acordar,mas foi inovador as coisas terem acontecido de verdade,e o final fico legal aquele clima de eu sou uma alma penada e vou voltar.
ResponderExcluirEsta historia ao contrário das outras três que li, é SUAVE, uma leitura gostosa, ou seja, não é um texto corrido, que sai atropelando.
ResponderExcluirGostei das expressões, do jeito como descreve o bar, o motoqueiro, tem um bom palavreado e esta bem escrito.
Parece que o autor é um dos poucos que lê, perto dos outros que li rs (não generalizando, gostei de mais um fora este).
Mas não vi terror na historia, e o final poderia ser mais elaborado como o meio da historia que estava muito bom. Uma pena!
Achei que este me pareceu mais um conto de fantasia do que de terror!! /o\
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