segunda-feira, 11 de maio de 2009

SEM REMISSÃO

Estranho como a lembrança me vem assim, de repente. Há algo de muito errado com ela. Ou será impressão minha? Vai ver é algo que vem de todo o restante de minha vida, que não passou de uma sucessão de erros. E afinal, que vida não é assim para quem tem um rabo longo demais? Se pelo menos eu fosse cego, ou tivesse rabo curto. Talvez o melhor fosse ter continuado a olhar para o rabo dos outros. Todos eles, todos os outros, sempre tiveram algo que eu quis. Qualquer coisa. Ou tudo.
Um ladrão, um assassino, um invejoso. Seja como for, sempre fui um pecador, e dos bons. Mas por que nunca pensei nisso antes? E por que me vem à mente essa estranha lembrança agora? Maldita lembrança. Está me acusando? Até então, eu jamais me soube um pecador, assim como jamais me soube uma eternidade antes de eu nascer. E eu nasci de minha mãe, esposa de meu pai, homem que vem agora me trazer essa lembrança de uma história contada por ele.
Dizia ele contar doze anos de idade quando aconteceu, lá pras bandas de Palmital, uma cidadezinha esquecida por Deus e pelos políticos. Nessa idade de meu pai, contada há muito tempo, os homens deveriam estar criando mais cidades e gentes do que as que Deus poderia prover. Criavam também os políticos, isso é certo. Tão certo quanto é certo que criar políticos não quer dizer muita coisa. Talvez mais pecados, sei lá. Mas meu pai não estava muito preocupado com nada disso. O que interessava ao menino de então era outro tipo de pecado, aquele do qual sua idade não o permitia escapar. Se perguntassem a ele qual o nome daquele pecado, ele diria “Mariquinha”, não por ele, porque para ele ela era o Paraíso. Mas ele era domado por meu avô. Então, se o velho dizia que Mariquinha era o oitavo pecado capital, meu pai acatava e depois a catava.
Ele e a sua pinga. Meu pai e a sua pinga. Claro que não com doze anos, mas agora, já homem. Pinga a pinga incessantemente, transforma-a em uma cachoeira para poder ter coragem de encarar o que ele queria esquecer e que aconteceu numa das noites de seus doze anos.
Vinha da casa de Mariquinha, claro, mas jamais diria isso ao meu avô. O feijão ainda se confundia com o mato, e o mato faria mais vistas, porque meu pai largou tudo pra lá e passou o dia com sua amadinha, menina bonita que merecia uma surra. Não ela, claro. E quando a noitinha foi chegando, meu pai ainda não havia pensado em uma desculpa para o trabalho não feito.
Aqui, neste ponto da história, me lembro perfeitamente, meu avô sorri um sorriso nervoso. “Praga de moleque dos infernos.” Mas fala baixo, para não interromper meu pai.
Com a noite já dona do mundo, meu pai tinha que ter alguma boa desculpa para o feijão cheio de mato e para a hora tardia em que chegaria em casa, e quem lhe proveu a primeira desculpa foi Lisinha, a mula velha que era seu meio de transporte. O menino meu pai pegou a enxada e, sem cerimônia, lançou-a a uma das canelas da mula. Nada muito profundo, porque ele gostava da bichinha. Agora que ela lhe serviria como muleta, então, passou a amá-la. E aí está.
“A Lisinha se cortô num arame, e eu levei a pobrezinha até o rio, pra mais pra lá de bastante longe além das terra do Sô Francisquinho, pai, que era pra lavá a ferida e ela num precisá de ser matada. Mas é muito longe, pai. E amanhã sempre é outro dia, né? Pra nóis e pros fejão.”
E então era só pegar a estradinha de terra, a pé. A Lisinha ficou lá, coitada, no pasto do sítio da Mariquinha. Desculpas para o pai dela também. Da Mariquinha, não da mula.
Agora, aqui, como a história entra naquilo que meu pai não gosta de lembrar, ele dá um trago maior na cachaça.
A noite escura estava por todos os lados, inclusive pelo céu, que não jogava uma estrelinha sequer sobre aquele mundão. Só a lua era algo que não fosse linhas escuras mais escuras do que a própria escuridão, e só aparecia como se fosse um fantasma acima das nuvens roncadoras. Meu pai olhava para cima e esfregava os olhos. Pensava que estava com sono e com os olhos cheios de remela a lhe ofuscar as vistas e transformar aquela lua naquela coisa fantasmagórica que lhe seguia os passos. E a luz da lua descia para desenhar na terra escura o que eram todos os homens. Sombras. Nada mais do que sombras. Sim, sim. Os meninos também. E vinda das costas, como todo mal, que sendo covarde, vem, a parca luz batia no lombo e espichava a sombra, que chegava sempre à frente, mas que se recusava a ser alguma proteção. Ao contrário disso, escondia os perigos da noite. E os perigos por lá, naquela época, eram muitos. Hoje nem tanto, porque o homem construiu um mundo que causa medo até em assombração. Mas naquele tempo, e por aquelas terras esquecidas, todas as assombrações eram cabra macho. Até a noiva morta de olheiras roxas e algodão no nariz que, dizia-se, esperava por seu noivo todas as noites em todas as porteiras do mundo, até ela era cabra macho... naquele tempo. Mas como eu dizia, existiam muito perigos por aquelas terras, e todos eles se aproveitavam das sombras.
Meu pai ia andando e olhando para trás. Enquanto as curvas, os milharais e os canaviais não vinham, as luzes do paraíso que acolhia Mariquinha eram um conforto. Depois essas luzes sumiram, e o conforto teve de ser criado. Então meu pai assobiou. Inventou uma musiquinha na hora e foi assobiando. A alegria da tarde toda só poderia ser lembrada mais tarde. Agora, andando sozinho pela noite em meio ao sertão, tudo eram temores. O assobio vinha para tentar enfeitar de alegria o medo, ou para afetar uma hombridade que ainda não deveria pertencer a um menino. E como se não bastasse aquele medo gelado que tomava a atmosfera ao redor de meu pai, ele, o menino mentiroso, ainda tinha que se preocupar em não deixar escapar nenhum detalhe naquela lorota que ele contaria ao meu avô.
Agora meu pai é interrompido por um grunhido de meu avô, que retoca o penteado de seu bigode branco.
Caramba! Como me lembro bem disso! Mas por quê? Por que essa lembrança me vem agora? E meu pai dando outro gole... É tão nítido em minha memória.
Meu avô tinha um cinto de couro feito por ele mesmo, e o que mais causava medo desse cinto era o fato do velho ter tirado a tira de couro da vaca ainda viva. “Porque coisa viva é que dá medo e que machuca”, dizia ele, olhando para seus oito filhos. Poderia-se dizer que a possibilidade da surra com aquele cinto é que movia meu pai com mais desenvoltura por aquela noite. E quanto mais ele se aproximava de sua casa, mais gritante se tornava a necessidade de ser boa a desculpa para seu atraso e para o feijão não carpido. Isso o fazia se esquecer dos fantasmas e de todo tipo de assombração que, sabemos, habitam esses pedaços de mundo isolados. Mas talvez as assombrações não queiram ser esquecidas. Sem temor elas deixam de existir, assim como o pecado deixaria de existir se não houvesse mais amor no mundo. E para não ser esquecida, ou para lembrar meu pai de sua condição humana, uma dessas assombrações apareceu bem à sua frente.
Já havia um punhado de passos que ele estava entre um vasto canavial. Havia de esquecido de sombras e de tudo o mais, pois agora o caminho ladeava umas bandas esquecidas pela lua embaçada. Até que uma curva virou as costas para a lua novamente, e meu pai pôde ver sua sombra se esticando à sua frente e se deformando sobre algo deitado sobre dois cavaletes bem no meio da estradinha de terra, tomando a passagem de um lado a outro. O menino meu pai parou, tendo as tripas a se liquefazer dentro do corpo gelado e percorrido por um calafrio lancinante. Era um caixão. Um caixão de defunto desses que não embelezam nenhum tiquinho a morte. Só um ataúde de madeira grosseira com seis alças.
O menino ficou parado, congelado, completamente impossibilitado de se mover. E sua letargia era tão desgraçadamente grande, que ele julgou que não haveria nada a ser feito e que aquele seria o seu caixão, onde ele seria enterrado, pois só podia já estar morto. Mas um vento repentino soprou. Apenas uma lufada, um bafo quente de um segundo que jogou um punhado de areia seca sobre a tampa do caixão e que levou uma folha de cana a acariciar o rosto de meu pai.
A letargia se foi, e o menino correu. Deu as costas para o caixão e correu. Já não sabia se chorava de medo ou pela poeira que lhe enchia os olhos. E foram tantos passos grosseiros sobre a estradinha seca, que seus olhos começaram a arder de verdade, mais do que o suportável. A dor foi dando lugar à raiva. A dor foi dando lugar a outro medo.
“Porque coisa viva é que dá medo e que machuca.” Sempre a estalar aquele chicote que limpava até o pecado mais imundo.
— E procê vê como eu era cabra macho mesmo quando era ainda um fiotão — me diz meu pai, contando a história —, eu decidi que eu ia incará aquele caixão dos inferno.
Estranho! Eu não me lembro de um dia, antes de agora, ter me lembrado de meu pai me dizendo isso.
O fato é que ele voltou, e lá estava o caixão, impedindo a passagem como se fosse um monte de capim num córrego. O menino pensou em simplesmente pedir licença para o caixão, mas pensou também na possibilidade de aquilo tudo ser uma brincadeira de alguém. Temendo passar por covarde — até pelo fato de ter saído correndo —, meu pai simplesmente foi até o caixão e estendeu a mão, a fim de empurrá-lo para a beira da estradinha. Mas o ataúde arrastou-se rangente para trás, e com uma voz que parecia vir repleta de histórias do mundo, disse:
“O limite do homem é a natureza que eu carrego. Você pode escolher aceitá-la e morrer como um homem, ou pode querer sobrepujá-la e morrer como um escravo. Aceite-me como um limite, aquele de quem você deve fugir mas do qual jamais escapará.”
Meu pai, que era “simprão”, como ele mesmo diz, não entendeu tais palavras. Como a ignorância é o combustível de qualquer ação, o menino meu pai temeu o que ele conhecia, o cinto de meu avô, e permaneceu descrente em relação a qualquer aviso sábio do caixão-profeta. Juntou a isso a certeza de que coisa boa não poderia vir daquele encontro, e chutou o caixão, derrubando-o no chão.
O mundo tornou-se um rabisco negro, de tanto que o menino corria, porque atrás dele, além de rabisco, o mundo tornou-se o som de todos os pecados. Ao olhar para trás, meu pai viu Satanás, enfeitado de um carnaval risonho, arrastando atrás de si uma corrente de desgraçados em chamas. As almas gritavam palavras antigas, do tempo em que pecaram.
Neste ponto do relato meu pai sempre se arrepia e dá outro longe gole na cachaça, porque ele diz que o Diabo piscou-lhe um olho vazado e ofereceu-lhe uma cama fria.
“Mas durma embaixo dela”, foi o que disse Satanás. E passou por ele.
Da corrente de desgraçados, uma velha com as vísceras expostas cuspiu-lhe uma bola de catarro que lhe acertou a coxa direita. E essa, segundo meu pai, é a explicação para o fato de ele ser coxo.
Segundo meu avô, meu pai coxeia devido à cintada que levou por inventar tamanha desculpa.
E então aqui, conversando com esses dois homens, eu entendo o motivo da estranheza de tal lembrança, porque meu avô morreu antes de meu pai se tornar pai, e meu pai morreu antes de eu me tornar filho.
Isso faria minha nuca se arrepiar, mas não sinto nada porque... Oh, não! Oh, meu Deus! Por favor, meu Deus. Me perdoe. Não! Não! Me ajude! Me tire da escuridão. Não joguem mais terra em cima de mim.

7 comentários:

  1. Muito bem escrito,envolvente e tudo,mas sinceramente não entendi pq ele estava dentro do caixão,e a relação entre o pai dele morrer antes dele nascer,e ele já existir como alma Õ.õ,sinceramente muito bom,mas foi o único que não entendi,parece as histórias que o pessoal que vive em sítio conta,mas não entendi Õ.õ

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  2. Eu acho que eu entendi. Tem uma questão de lógica aí só assim pra explicar.O cara diz que não sabe de onde lemnbra da história porque nunca conheceu o pai dele e agora que ele ta morto o pai conta a história pra ele. acho que história nunca aacontece mas, o pai dele conta pro filho a própria história da morte do filho. Será? Sei lá. Deu medo

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  3. o mistério do conto é do que se trata o conto Õ.õ

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  4. Haha!
    Ming, a intenção era mais ou menos essa mesmo: um conto que não pudesse explicar o que é inexplicável.
    Não tive a intenção de criar uma história com um final racional, apenas contar uma história à moda interiorana, como você bem observou.
    Mas há a necessidade de uma lógica, sim. O uso de tal lógica é subjetiva, o que permite a cada leitor deprender o texto o que lhe aprouver. Sendo o sobrenatural algo, provavelmente, inexplicável, a lógica, ou falta dela, é o que dá o tom (ou pelo menos foi isso que eu pretendi. Haha!).
    Abração, galera.

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  5. Sim, sim. Há quem as entenda, há quem não.
    No entanto, não há nada de abstrato em, por exemplo, um pai morrer antes de seu filho nascer, visto que, como é de conhecimento geral, os machos humanos não gestam suas crias. Haha!
    Poxa! Os elementos estão aí. Esse negócio de leitura dinâmica só funciona para textos políticos.
    Mais abraços à rapaziada.
    E parabéns. O nível do concurso está ótimo.

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  6. Conto maravilhoso! Adorei! Exala Brasil e poesia pelos poros. Parabéns!

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