quinta-feira, 14 de maio de 2009

SEU DEUS

Vejo como as conseqüências são duras para aqueles que provocam a ação antes. Mas se não fosse por ela, nada disso aconteceria. Se não fosse pela forte fé dela, ela estaria viva. Foi minha descrença que a matou.

*****

De fé inabalada, Maria, minha esposa, só seria mais feliz se todos da família fossem tão devotos a Deus quanto ela.

Todo domingo ia à igreja para orar. Pedia a Deus que protegesse a família de todos os males existentes no mundo. E daqueles que ela pedia proteção, eu era seu maior protegido. Me amava tanto.

E eu, o cético da família, aquele que nunca havia pisado na igreja. Pedidos não faltaram. Não acreditava em Deus, Diabo, milagres, santos e demônios. O que me importava eram a família e os negócios.

Como bom diretor, eu era paciente, conselheiro, ouvinte. Tolerava os alunos mal intencionados, aplicando-lhes penas como serviços à escola. Nada fora do comum. Até aquele dia.

Como sempre fazia ao aplicar uma detenção, observava o aluno limpar uma das pias do banheiro masculino. Decorrido quase 15 minutos, o menino estava na penúltima pia. O som de uma privada acionada foi ouvida no último box. Isso nos assustou, pois pensávamos que estávamos sozinhos no banheiro. Fui verificar. Bati uma vez a porta de madeira. Alguém assoviava lá dentro. Bati uma segunda vez. O assovio parou.

- Quem está ai? – perguntei em tom sério. Não obtive resposta.

Bati pela terceira vez. Então um filete de água começou a escorrer por baixo da porta. Abri a porta e para minha surpresa, o box estava vazio. A água toda saia da privada, como se estivesse entupida. Falei para o garoto avisar ao zelador. Novamente não obtive resposta. Olhei para as pias, e lá estava o menino. Mas não do jeito que deveria estar. Alguém havia batido sua cabeça contra o espelho, e seu corpo estava sobre a pia que estava limpando.

O pânico tomou conta de mim. O que estava acontecendo?

Gritei por ajuda. Um dos professores entrou afobado pela porta. Olhou a cena e encarou do corpo inerte do aluno para mim, em choque. Pedi pela ajuda, que logo veio com o zelador e outros professores. Uma pequena multidão de alunos já rodeava o lado de fora do banheiro.

Como sendo o único presente na cena, fui acusado de crime doloso e tentativa de homicídio. Mas como o garoto se recuperou e provou com as próprias palavras que eu não havia feito nada, fui apenas indiciado a prestar serviços comunitários.

Maria ficou ao meu lado o tempo todo. Falava que a fé em Deus havia salvado o menino e que algo ruim o havia atacado. Só não sabia o que era.

Fui afastado do colégio sob protesto dos pais. Atordoado, fui para casa. No caminho, quase atropelei um senhor de terno preto. Ele apenas sorriu e pediu desculpas. Estranhei.

Minha esposa não estava em casa. Provavelmente fora à igreja para orar por mim.

Cansado, dormi cedo. Não vi que horas eram quando senti Maria se sentando na cama. Me virei, mas ela não estava lá. Ninguém estava.

Fiquei acordado até a hora que Maria chegou. Parecia cansada. Dei um beijo em sua testa e dormimos.

*****

O telefone tocava. Alguém já havia atendido. Depois de alguns segundos, ela chamou pelo meu nome, desesperada. Sua expressão era de completa tristeza e choque.

- O que houve? – perguntei, indo abraçá-la num ato de solidariedade.

- Encontraram o bispo Cláudio morto dentro do confessionário. – a resposta fora um baque. Lágrimas rolavam dos olhos dela. A dor era visível.

Pela primeira vez, pisei dentro da igreja. Uma multidão de fiéis choravam, gritavam e rezavam dentro do grande salão. A polícia não conseguiu conter as pessoas fora da igreja, Só haviam conseguido criar um perímetro no local do crime. Havia sangue na porta do confessionário.

- O encontrei em estado lastimável. – disse o padre Rafael, se aproximando. – Como podem fazer algo tão cruel com um servo de Deus?

Olhei para os crentes. Dentre eles, reconheci um sorriso simpático.

- Já volto, querida.

Andei por trás das colunas, onde havia visto o homem. E lá estava ele.

- Dia triste, não? – disse ao me aproximar dele.

- Lamentável. Lamentável. – disse em resposta, sem tirar o sorriso do rosto.

- Olha, me desculpe por aquele dia. Eu tava com a cabeça cheia e...

- Eu sei. – interrompeu o homem.

- Sabe o que? – perguntei confuso.

- Que você estava com problemas. – de sorriso simpático, passou para um mais cínico. – E posso te ajudar.

Olhei espantado para ele.

- Não fique assim. Não é a primeira vez que você me vê. Bem. É sim. Na outra vez, quem me viu foi o garoto.

Continuei encarando-o incrédulo.

- Como sabe do aluno? Quem é você?

- Sou alguém que quer lhe ajudar. Só isso. Sei de coisas que você desconhece. Segredos. Mentiras. – o cinismo em seu rosto era claro.

- Que segredos? Quem está mentindo? – eu já estava me irritando com toda aquela merda.

- Faremos assim: você faz um acordo comigo e eu te conto tudo o que quiser saber.

- Que tipo de acordo?

- Papeladas não são. Só falar que aceita e pronto.

Pensei por alguns minutos.

- Tá. Eu aceito.

- Ótimo. – estendeu a mão para concluir o acordo.

Olhei em direção à Maria. O padre Rafael a consolava.

Não sabia o que iria acontecer depois disso. Um acordo qualquer, sem saber dos detalhes. Apenas o motivo de saber o segredo e as mentiras que seriam revelados a mim. Era o risco que eu tinha que correr.

*****

A noite caíra e Maria ainda não havia voltado da igreja. Liguei para seu celular, mas ela não atendia. Preocupado, fui à igreja. Parei em frente às grandes portas de madeira. Empurrei-as e olhei por dentro. Estava parcialmente escuro, já que algumas velas iluminavam fracamente o fundo. Entrei e fui procurá-la pelos corredores. Todas as salas estavam vazias.

Um sino tocara. Não era da torre. Vinha de algum lugar abaixo. Havia um corredor pela qual o vento soprava gelado. Entrei nela e já ouvia murmúrios. Luzes alaranjadas de lampiões iluminavam o corredor.

Cheguei na entrada de um grande salão, parecida com uma masmorra. Paredes de pedra fria, candelabros espalhados pelo local e um bloco de concreto com uma massa branca e um círculo rubro sobre ela.

Pessoas encapuzadas cercavam o bloco, como um ritual.

- Vá lá e pare isso. – disse uma voz atrás de mim.

Assustado, olhei para trás, mas entrei com meio corpo dentro do aposento devido ao susto. O suficiente para todos os presentes perceberem.

- Você! – vociferou uma voz ao fundo, ao que parecia ser o mestre de cerimônia do ritual.

- Fique! – ordenou a voz atrás de mim. Outra pessoa saia das sombras. O homem do acordo.

Olhei incrédulo para ele. Ele encarava sério o mestre de cerimônia, que retribuía com o mesmo olhar.

- Quer saber qual é o acordo? – perguntou a mim, sem olhar. – É eliminar todos que reverenciam o demônio. Sem exceções. – e encarou uma figura ao lado do mestre de cerimônia.

Olhei para o encapuzado. Ele olhava para o chão, como Maria sempre fazia ao se sentir culpada. Não acreditei.

- Não. – balbuciei.

- Isso que sua esposa estava escondendo de você. O “Deus” que ela tanto ama não é aquele que você pensa. E também o estava traindo com o padre Rafael. Segredos e mentiras, lembra? Vou acabar logo com isso.

Estalou os dedos. Uma luz prateada me cegou por algum tempo. Quando tudo voltou, a sala estava vazia, exceto por mim e por ele.

- Sou um servo do verdadeiro Deus. Apenas presto seus serviços, e ninguém pode me atrapalhar. Me desculpe pelo garoto.

- Você também matou o bispo?

- Parece que ele era contra tudo isso e acabaram matando-o. Uma pena. Ele era um bom servo de Deus.

- E agora?

- Agora você vai embora. Continue sua vida. Esqueça-os. Os pecadores não merecem misericórdia ou lembranças. Não valem à pena.

*****

Agora sim. Vejo como as crenças são fortes. Nenhum Deus é piedoso. Nem aqueles que reverenciam o Deus do céu como aqueles que adoram o Deus do inferno. Ambos não merecem ser adorados. Ninguém os conhece como eu conheço.

Vejo como as conseqüências são duras para aqueles que provocam a ação antes. Mas se não fosse por ela, nada disso aconteceria. Se não fosse pela forte fé dela, ela estaria viva. Foi minha descrença que a matou.

Um comentário:

  1. Estava lendo e achei ual,até que cheguei no fim,que me decepcionou,e a melhor parte da história tem que ser o final,o conto em geral é muito bom,muito mesmo,dá um clima de igreja,histórias conspiratórias,mas o final é decepcionante,eram todos fanáticos Õ.õ,está no hall que eu não votaria como melhores,embora de começo achei ser um dos melhores,ficou devendo tudo no final.

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