quarta-feira, 27 de maio de 2009

A VIAGEM

Rodolfo Góes acordou com o ruído do despertador do celular que, vibrando e tocando música, quase pulava sobre a cabeceira de sua cama. Olhou para o lado e a cama enorme estava vazia. “Ótimo” – pensou – “A alemãzinha já se foi. Valeu à pena cada euro dos 200 que eu paguei. Foi muito engraçado escutar suas fantasias infantis sobre ser cantora ou atriz. Que burra! Puta só consegue, no máximo, filmar pornografia. Ponto.” – observou divertido.

Levantou o corpanzil gordo da cama e se dirigiu nu ao banheiro já com o celular na mão. Não eram nem seis da manhã e ele já ligava para a secretária. Sentou-se no vaso e falou.

_Brigitte, conseguiu fechar a reserva da minha passagem e a do hotel também?

_Sr. Rodolfo, consegui uma reserva agora cedo na classe econômica bem a tempo para que o senhor chegue no horário para a reunião às duas da tarde. Os vôos estão meio lotados por causa do feriado de amanhã e...

_Brigitte, eu não vôo de classe econômica. Ponto. Mesmo que eu tenha que transferir a reunião de hoje à tarde, não me interessa! Dê um jeito, use seus contatos, se vire!

Desligou irritado sem sequer se despedir. “É preciso tratar os subalternos assim.” – pensou.

Tomou banho, vestiu o robe atoalhado e ligou a máquina de fazer expresso. Abriu as cortinas e ficou apreciando o dia terminar de nascer, dourando a paisagem verde de Munique. Olhou a agenda no celular e levou um susto. “Merda! Quase esqueci.” Ligou outra vez para a secretária.

_Brigitte, hoje é aniversário da minha filha. Compra um presente e manda entregar na casa da mãe dela.

_E o que eu compro, Sr. Rodolfo?

_Não sei. Compra qualquer coisa que você goste. Só dê um jeito de que entreguem hoje lá no Recife. Manda um cartão junto e escreve qualquer bobagem. Ah, alguma novidade sobre o meu vôo?

_Sim. Eu ia ligar para o senhor agora mesmo. Se transferirmos a reunião para as cinco da tarde, posso encaixar o senhor num vôo às treze horas. Há muitas vagas na classe executiva neste vôo.

_E qual é a companhia aérea? Você sabe que eu não vôo de LOT, TAROM, estas merdas.

_Não, não. O vôo é Lufthansa.

_Fechado então. Manda pro meu celular um email com os dados da reserva e providencia a alteração do horário da reunião.

Ficou sorvendo o café forte e denso devagar enquanto admirava o apartamento enorme, decorado com gosto sóbrio e caro. Preparou os papéis e fez um resumo sobre os assuntos em pauta na reunião. Ligou o notebook e resolveu ler um pouco sobre o destino do seu vôo: Bucareste – Romênia. Era bom saber alguma coisa sobre aquela escória ex-comunista para puxar papo com os clientes. Depois, terminou de preparar a mala, vestiu o caro terno Armani e ligou para a empresa de táxi agendando sua ida ao aeroporto.

Na fila do check-in já estava irritado com a demora no embarque. Certamente escreveria um email bastante desaforado citando nomes e horários. Conhecia muita gente influente e se divertia sobre quanto estrago um simples email podia causar.

À sua frente, um jovem alemão louro de uns trinta anos, enorme e forte como um jogador de rúgbi conversa com outro homem moreno bem mais novo e mais baixo que tem sotaque espanhol. Rodolfo não daria muita atenção a eles se não visse, de repente, o espanhol dar a mão ao gigante alemão. Havia alianças douradas e iguais em ambas as mãos.

“Veados!” – pensou – “Estão em todo lugar. No Brasil estes sem-vergonhas teriam mais pudor de se exibir. Mas aqui na Europa, é um inferno. Andam de mãos dadas, beijam-se nas ruas, não querem nem saber.”

Embarcou, sentou junto à janela na confortável e larga poltrona da classe executiva e já chamava a aeromoça, grosseiramente, pedindo para saber as opções de bebidas.


Para seu desgosto e completo desagrado, o casal de homens senta ao seu lado. O alemão na poltrona do meio e o espanhol na do corredor. Ele xinga em pensamento, enquanto de soslaio observa que não seria boa idéia irritar o alemão grandalhão.

Faltavam uns dez minutos para a decolagem e, para a sua surpresa, a aeromoça traz pela mão uma senhora idosa e um garotinho de uns cinco anos. A senhora usa um simples vestido florido de algodão, do tipo que se costura em casa e é branca, gorducha e tem os cabelos bem brancos. O menino tem os cabelos cortados bem curtos e tem a tez escura, num tom de chocolate. Ele veste uma camisa com motivos infantis e segura uma girafa amarela de brinquedo numa das mãos.

“Era o que me faltava. Trazerem agora gente da classe econômica pra cá. Por que deram upgrade para estas pessoas?”.

A aeromoça acomoda a senhora na poltrona à frente de Rodolfo e o menino ao lado dela. Ele se irrita e se indigna ao escutar o menino chamando a senhora de “vovó”.

O avião se dirige à pista de decolagem e Rodolfo, assustado, observa pela janela o céu se fechando de nuvens escuras. A aeronave finalmente decola, adernando como um pássaro ferido, em meio às nuvens castanhas.

Passam-se uns vinte minutos e ele já bebeu umas duas doses de uísque. As refeições são servidas e ele aproveita para olhar, indiscretamente, o decote da aeromoça. Seu vizinho alemão observa e franze o cenho em desaprovação a seu comportamento. Talvez, mais sensível por ter bebido demais, Rodolfo começa a achar extremamente desagradável o cheiro de velhice e sabonete barato que rescende a senhora à sua frente. Como se não bastasse, ela tira um livro de contos de fadas da bolsa e fica contando histórias para o netinho, num rítmo cadenciado e lento que lhe dá sono.

Ele cochila por uns minutos e acorda com um solavanco do avião que está passando por uma área de turbulência. Os sinais de apertar os cintos são acesos. Ele aperta ainda mais o cinto e segura forte no braço da poltrona com medo. O casal de homens ao seu lado conversa tranquilo, sem dar muita importância à tempestade lá fora. Rodolfo começa a prestar atenção na conversa deles. Defitivamente, o rapaz mais baixo é realmente espanhol, pois troca o som de “v” do “w” alemão por “b”. Pelo que ele entendeu, os caras estão planejando comprar móveis novos por alguma razão. Estão organizando e se preparando para alguma coisa animadamente. Ele bebirica seu uísque e quase se engasga quando escuta uma palavra: “adoção”.

Meio bêbado e sem muita noção, ele deixa escapar alto: “Faggots!” *.

Mais que rapidamente, o alemão faz uma expressão indignada, solta o cinto e se levanta. Ele está vermelho como um tomate e agarra Rodolfo pela lapela enquanto o espanhol o segura pelo braço tentando acalmá-lo. O gigante o sacode e grunhe uma torrente tão pesada de palavrões em alemão que Rodolfo não entende sequer a metade. A senhora e o menino olham para trás assustados. Finalmente, o rapaz espanhol consegue dissuadir o companheiro que larga a camisa de Rodolfo. O homem bufa vermelho e faz um gesto com a mão, batendo o punho fechado na palma da outra mão. O espanhol fala alguma coisa sobre não dar tanta importância à “esta gente”.

O clima ficou tenso e Rodolfo, covardemente, se encolhe e finge dormir. O avião continua a sacolejar como um carro velho numa estrada esburacada. Eles entram numa nuvem escura e uma luz forte como um flash brilha e um barulho ensurdercedor se faz ouvir. O avião foi atingido por um raio!


As luzes se apagam e há uma sensação horrível de queda enquanto as máscaras de oxigênio saltam à frente dos passageiros. Agarrado à poltrona, Rodolfo observa, em meio às luzes dos raios que iluminam o interior da aeronave, a senhora abraçando o netinho, segurando-o junto ao peito como se seu corpo pudesse protegê-lo de qualquer dano. O casal de rapazes de mãos dadas e de cabeças juntas se confortando. Ele pensa com tristeza que está sozinho. Que vai morrer sozinho. Que a vida é injusta afinal.

Mas, miraculosamente, as luzes voltam a acender, o avião estabiliza e o piloto acalma os passageiros pelos autofalantes. Alguns minutos depois, os procedimentos de pouso começam e o avião mergulha numa grossa camada de nuvens brancas que cobre toda a cidade lá em baixo como um lençol alvo.

O pouso é suave e os passageiros se encaminham para pegar suas bagagens. Rodolfo está impressionado com as instalações do aeroporto. Ele tinha uma idéia muito diferente da Romênia e o aeroporto é impressionantemente limpo, bonito e moderno. Absolutamente clean.

Ele pega a mala na esteira e se encaminha para passar pela imigração. No entanto, há a frente uma fila com aquele antiquado método de seleção de artigos a declarar. Apertando o botão e acendendo a luz verde: liberado. Acendendo a vermelha, a bagagem será revistada. Isto é muito estranho, pensa ele. Este tipo de verificação é a última coisa que se faz. Sempre depois de se passar pela imigração.

À sua frente na fila, a senhora com o netinho no colo, aperta o botão e a luz verde acende e eles seguem. Bem mais à frente, através do vidro de uma janela, amigos e parentes acenam para eles contentes.

Os rapazes apertam o botão também e seguem na mesma direção da senhora. Abraçados e da mesma maneira acenando para pessoas do outro lado da janela.

Rodolfo aperta o botão e a luz vermelha acende e se faz escutar um sinal sonoro baixo e desagradável. Ele é encaminhado a um corredor lateral e segue xingando e arrastando a mala atrás de si. O corredor leva a outro corredor ainda. Este é comprido e mal iluminado e ele segue de má vontade. Ele planeja, muito seriamente, escrever um email extremamente desagradável às autoridades romenas por ter sido tão maltratado. Eles vão ver. Eles não perdem por esperar. Com certo assombro e receio ele vê muito distantes as luzes encarnadas e bruxelantes de um enorme salão ao final do corredor.

No dia seguinte, na capa dos principais jornais, há fotos do avião espatifado nas cercanias de Bucareste. Aparentemente caiu após ter sido atingido por um raio. Não houve sobreviventes, infelizmente.

5 comentários:

  1. Gostei do conto. Pelo que entendi, a mensagem é sobre preconceito: racismo, homofobia, preconceito social, etc. É sempre legal ver um personagem fdp se dando mal. Parabéns!

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  2. ain tava gostando tanto,ai me decepcionou no final O.O,não gostei do final,o resto estava tão interessante.

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  3. Adorei o seu protagonista, é bem aqueles tipinhos que vemos na sociedade mesmo. Bem arrogante, e se acha o dono da verdade, tu fez uma bela crítica relacionada a esse tipo de pessoa. Gostei tbm da forma de sua narrativa, bem atual, contemporânea e impecável. Porém o final realmente foi muito decepcionante, eu sinceramente esperava mais desse conto!! =/
    Eu estava achando ótimo, mas o desfecho deixou a desejar!!
    No mais, boa sorte!
    E não pare de escrever!!

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  4. Faltou o "tal" do terror. Mas foi muito bem escrito.
    Deu pra perceber uma leve crítica social contra as pessoas que são metidas, que são arrogantes e que além disso, são homofóbicas...
    O final ficou meio confuso e deixou a desejar...
    E o Rodolfo é muito chato! =D

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  5. eu gostei bastante deste conto! imagino que pouca gente entendeu que o Rodolfo foi pro inferno no final.

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