segunda-feira, 15 de junho de 2009

3-D

Armei meu ninho em uma poltrona ordinária na quarta fileira frontal e, obedecendo ao costume, degustei a barra de chocolate – refutando qualquer contra indicação de ingerir nutrimentos antes da sessão terminar.

Precisava de energia calórica para revigorar minha consciência. Os atletas estimulam seu desempenho com esteroides anabolizantes. Eu, cinéfilo e crítico da sétima arte, utilizo carboidratos.

Encalhei em um cinema bem monótono: arquibancadas em declive, estilo coliseu, estofado vermelho volumoso e carpete preto, cercados pela extensa câmara descolorada de branco, onde o equipamento sonoro arcaico e as poucas fontes luminosas distribuíam-se minuciosamente pelo multíplex. A saída abria-se aos fundos, como numa igreja.

Clima afável, porém não averiguei nada da prometida “revolução nos meios de comunicação”.

Gigantes da indústria do entretenimento, nacional e estrangeiro, ilustravam a assembleia. Todos fisgados até as ruínas daquele complexo abandonado, numa micro cidade da qual ninguém ouviu palavras sobre, pela mesma razão: um convite surreal. Há uma semana recebi a “amostra grátis” no escritório do jornal onde trabalho.

Ilusionismo, vapores alucinógenos, bruxaria, iorubá, neo alquimia ou pacto com o demônio, eu não soube responder. Sabia apenas que a tal “Máquina dos Sonhos” era o projeto de cinema 3-D mais convincente do qual já vim a assistir.

Entretanto, mantive a postura cética, como sempre. Estou aqui para que Bonfim Thunderbolt, o homem que caçou estes patrocinadores, prove-me da autenticidade de sua invenção.

Uma mulher de vestido escarlate equilibrava uma bandeja como se andasse na passarela, enquanto seguia pelos convidados distribuindo estranhos petiscos, acompanhados de copos de água. Livrei-me da embalagem do chocolate, para não espalhar suspeitas.

- Aqui está senhor – sorriu a mulher.

Seus dedos soltaram uma minúscula pílula na minha mão. Exótico comprimido preto e branco, de uns 0,5 cm de espessura. Na outra palma me impeliu a agarrar o copo descartável, despejando a jarra de água em seu conteúdo.

- Tome direitinho e tenha um ótimo filme!

- E a função da pílula seria? – questiono, farmacofóbico como sempre.

- Tornar sua estadia uma aventura inesquecível!

Devia ser a primeira vez que um “armazém” de entretimento adota a iniciativa de drogar os espectadores, para desde modo “extasiar” a experiência. Vou deixar esse trecho bem cáustico na resenha. Estranhamente, não houve controvérsia dos demais convidados, aquela moça sabe convencer. Sem delongas, Thunderbolt transpôs velozmente a sala de projeção, ascendendo o palco.

- Bom, não posso elucidar com palavras o que a “Máquina dos Sonhos” representa – balbuciou Bonfim, mal pausando para respirar - mas ela certamente evidenciará por si própria o magnífico potencial do qual dispõe. Preparem seus sentidos senhores, e que os sonhos se tornem realidade!

As luzes desincorporaram o teatro, os olhos invalidaram-se com a abstinência de claridade. Um glóbulo branco fosforescente acende no campo aéreo da penumbra. A aparição luminosa incidiu no telão, afugentando as sombras.

Subitamente, um Big Bang de imagens eclodiu em minha íris. Verde-amarronzado suprimiu as demais cores, procriando uma floresta gigantífera, que colonizou inteiramente o perímetro ocular. Vegetou-se árvores utópicas, aberrativas, que bloqueavam o azul-celeste, equiparando sua altitude ao de arranha-céus metropolitanos.

Uma brisa vivida me beijou a queima rosto, e fui capaz de aspirar o odor herbívoro da natureza. Não pude discutir a veracidade da névoa, que deslizou pelo piso e me desagasalhou. O tato, as sensações, eram todos reais.

Um cão da raça labrador retriever – de carne e osso – espargiu o tapete de folhas mortas e distintos húmus que revestia o solo da floresta equatorial, correndo tal um fugitivo de tourada. Vestia chapéu de palha e cachecol azul, o convertendo numa vicissitude vulgar para o painel proposto. Fantasticamente, o canídeo salta no palco, como se fosse refratado para o nosso mundo.

- Boa tarde senhores! – exclamou extraordinariamente o labrador – Meu nome é Plutão, e serei o guia durante este prodigioso tour!

Os executivos conheciam perfeitamente aquela prosopopeia: atribuir características humanas a animais, quadruplicando seu carisma, especialmente em meio ao publico infantil. Ouvem-se tosses e bufos – ninguém na plateia estava impressionado.

- Apertem suas emoções e preparem-se para a viagem! – entusiasmou o guia.

A barca audiovisual nos transportou pelas vísceras do bioma, sobejando uma realidade genuína. O guia enfatizava os espécimes do ecossistema, definindo as características do animal, cargo na teia alimentar e função no meio-ambiente.

Depois de serem apresentados, as formas de vida tridimensionais transpunham a projeção e passavam a integrar o público, contracenado com as testemunhas. A fauna compunha-se da biomassa típica de uma floresta tropical. Alimentei um mico-leão-dourado com biscoitos industrializados, e ele gostou.

Inesperadamente, o ritmo do informativo foi cortado. Uma progressão de acordes de violão começa a soar. Harmonia suave, belo anestésico sonoro. Plutão havia materializado o instrumento não sei de onde, e tocava como se tivesse polegares.

- Um fato tenebroso tem eu a recitar. Algo ruim escolheu essas terras para habitar. Essa melodia, toco tranquila para não os matar do coração. É um aviso de amigo, dado por seu bom companheiro Plutão. Quando da crosta da catacumba sair, aquele que chamam de “Surto da Cripta” suas almas vai querer possuir, estão sejam cautelosos e nunca deixem sua atenção se despir!

Detectamos uma zona de desmatamento no percurso, onde o céu planava feito uma pintura suturada nos contornos das copas das árvores – uma janela aberta na cerração da mata, exibindo o azul colossal, o astro solar radiante e o baile de nuvens. Captou-se fato inédito: um meteorito queimava as plumas da atmosfera, decepando verticalmente a paisagem.

Aderindo na trilha novamente, a floresta se fechou na clausura, tal fosse um predador de arapuca. Assombrada melancolia nos sufocou quando os feixes de luz, evasivos, diluíram-se completamente na vegetação jurássica. As titânicas plantas lenhosas intrincaram umas nas outras, numa simbiose para garantir o absolutismo das trevas.

- Estamos na Garganta do Holocausto, onde o dia nunca nasce e Lua nem estrelas brilham – destacou o guia – Tomem cuidado!

Silêncio funerário reprimiu minha audição. Cantigas de pássaros e demais hinos da diversidade animal cessaram, se supondo que as espécies foram extintas na última hora.

- Não façam barulho, do contrário atraíram os habitantes destes lados – ressaltou a bússola canina – E não vão querer ser autores de tal feito!

Bonfim se ergue do banco, alongando o físico e articulando as câimbras.

- Escutem meus caros! – berrou o anfitrião – Agora vão ter um gosto da autêntica interatividade de minha cria, o ápice supremo do realismo jamais aproximado!

- Por favor senhor, mantenha a calma, está arriscando a vida de todos aqui presentes, inclusive a sua – alertou Plutão.

- Venham a mim infantes da outra dimensão! – gruiu Bonfim, alucinado – Venham!

- Não é uma boa ideia senhor...

Violão vibra, dessa vez uma harmonia depressiva, nostálgica, arrastada e nauseante. As imagens começam a convulsionar, trêmulas e anti-simétricas, distorcendo as linhas como um sismo sensorial. Efeito semelhante contrai os personagens 3-D fora da tela, que debandam suicidamente.

- Este fenômeno só tem uma tradução – deprimiu-se Plutão – O “Surto da Cripta” está nas redondezas.

Um tremor desvirtua o soalho do palco senil aquém de Plutão. Nasce uma corcova de tabuas sob as patas do quadrúpede. Madeira pútrida e colônias de cupins são estilhaçadas, jorrando projéteis nas primeiras fileiras.

Protegi-me cruzando os braços em escudo na cabeça, mas arredei as pálpebras a tempo de ver o horror latente. Uma força sobrenatural arrastou Plutão com violência para o esôfago da recém-formada cratera, ouvindo-se seu chiado descer profundo na fenda. Acredito tal fato ter tido pouca relação com as leis da gravidade.

O que meu cérebro definiu como sendo uma nadadeira abissal, talvez uma estrutura óssea miscigenada por minérios brancos, bifurcou a cratera. Era um espesso “ferrão” circunflexo – encurvado para trás – donde manifestava disposições espinhosas menores no ângulo inferior, como uma faca torta.

Semelhando-se a uma serra em marcha, corta o palanque ao meio e parte em colisão para cima dos executivos. A lâmina errante desintegra as acomodações em velocidade supersônica, esfolando três metros de distância do meu assento.

O sabre atravessa o cinema numa onda sinuosa de detritos – estofados, ladrilhos e encanamentos arremessados em uma tormenta de varreduras. Manobrava na cólera de um tubarão para apanhar as presas de terno e gravata.

Inicia-se a chacina de chefões do entretenimento: gritos e pânico foram as últimas lembranças jazidas nas sepulturas da classe burguesa. Escuto o rugido do monstro subterrâneo, permeando o solo e estremecendo meus tímpanos.

Conferindo o massacre, pude delinear a criatura. A boca estendia-se cinco metros à frente da nadadeira, mantendo constante o método de abate: sugar a vítima para o subsolo e assim devora-la, nunca expondo detalhes fisiológicos no ataque.

A besta “surfava” no âmbito, quando disparos súbitos o ferem diretamente na anatomia enterrada. Bonfim, pistola 9mm em vanguarda, parte para uma contraofensiva balística, fitando da outra extremidade.

- Cometi um erro hoje, e está na hora de reverter meus pecados...

- O que está fazendo? – sussurrei – Vai atrair a coisa para cá!

Ele se deu de surdo e continuou atirando. Mas o heroísmo não surte reação no alvo, que direciona seu curso para a tela, ansiando a ingestão de Bonfim. O predador desvanece o terreno ao acelerar a locomotiva.

O inventor dispara pela última vez antes de encontrar os trituradores dentes-ceifa saltados da mandíbula imergida, dando o suspiro final ao puxar o gatilho.

Distingui a boca alongada e de envergamento curto, idêntico ao crocodiliano asiático gavial. Pele enegrecida e fragmentada, no estilo de uma superfície argilosa seca, onde brotavam estrepes curvas. Inexistência de olhos. Abocanhando Bonfim, a fera submergiu.

A arma de fogo é jogada na minha fileira, quatro assentos de longitude. Ajuda divina ou um empurrãozinho para a autodestruição, em todo caso coletei a 9mm.

Desdobra um sossego atormentador. Não ouço a criatura cavoucando ou móveis sendo arremessados. Subo pelos restos da escadaria, correndo até a saída. No negrume, tropeço numa perna desconjuntada, ensanguentando minhas roupas. Quase choro com a terrível surpresa.

Um tremor abala as solas dos meus sapatos, se propagando pelo corpo. Tinha ciência do que estava por vir. Abriguei-me em uma poltrona adjacente, comprimindo os membros para camuflá-los. A trepidação sobe de escala, e sinto o impacto. Minha poltrona é lançada no ar, imitando uma cadeira injetável.

Voo de embate a uma das paredes laterais do cinema, esmagando minha saúde no concreto da estrutura. Caio debruçado no chão. Não soube dizer se minhas pernas foram quebradas ou se virei paraplégico, meus membros inferiores não respondiam.

Checo o pente da arma, restava um cartucho. Uma ironia do destino, me impelindo a explodir meus miolos enquanto era tempo. Aguço meus órgãos ópticos na escuridão. Lá estava a anormalidade, com sua fisiologia ofídica, desenterrada e salivando na minha cara. Talvez pensando que eu estivesse morto, mas logo descobriria. Teria que escolher: balear meu encéfalo ou...

Um violão voador colide na cabeça da assombração, que inverte seu cuidado no ângulo da tela.

- O projetor... – suspirou Plutão, se esforçando para manter o equilíbrio. Gangrenas e diversas mortificações afloravam em seu couro – Atire no projetor!

Olho para cima e vejo o glóbulo luminoso, incidindo seus raios satânicos no quadro. Brando a 9mm, mão e dedo firmes. Foco-me no brilho, só teria uma chance. Atiro. A bala atravessa a máquina, que cisca antes de apagar. Aleluia! Finalmente, sobra só eu e trevas no cinema.

Um comentário:

  1. Muito bom. A linguagem, a tensão crescente, as imagens tão bem escritas que parece que estamos vendo um filme. Adorei!

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