segunda-feira, 15 de junho de 2009

GUERRAS

I. Além do calor repentino — que surgia do nada, parecendo rastejar pela fenda da porta —, havia ainda o choro irritante do filho. O homem queria saber aonde fora parar a fatia do seu amor pelo bebê. Digo, pois não era a primeira vez que pensava — e considerava — a morte do filho como único modo de calá-lo, porque se tornava quase impossível ouvir qualquer coisa em seu rádio, quando o garotinho decidia armar um berreiro. Pelo amor de Deus, ele não sabia como aquele rádio era simplesmente importante! De vez em quando, a execução do plano apetitoso que via em sua mente consistia em afogar o pranto da criança debaixo da superfície fofa de um travesseiro; afogar as suas lágrimas e todo o resto que ficasse no caminho da almofada. Se havia após o pensamento o aflorar de sublevadora culpa? É claro que sim, porém foi mais forte nas primeiras semanas. A culpa, por sua vez, fora agora arrastada fora do carpete de suas idéias germinantes, feito um indesejável móvel pesado, e substituída pela plausibilidade.

Mas antes que você crie uma imagem precipitada do pai, esse lampejo revoltante só causava sombra na sua cabeça quando o choro do filho tornava-se irritante e perigoso — no fim das contas, amigos e vizinhos, o pobre judeu holandês e sua família escondiam-se dos soldados alemães! E qualquer rumor que os pudesse denunciar, qualquer ruído, qualquer nada, o instinto dizia que ele deveria ser suprimido. E passado o berreiro, o homem procurava desintegrar a idéia; odiando-se pelo grau de perversidade que ela continha.

Era inegável que grande quantidade da sua angústia corrosiva vinha dos alemães. Quando Hitler subira ao poder, por volta de 1930. Em 1943, a S.S. mandara uma carta ao holandês, convocando-o para o trabalho numa fábrica de Munique, na Alemanha. Sabia ele no que acabaria: ele e todos os judeus que recebessem seus chamados seriam deportados a campos de concentração. Então, em uma semana, ele e a família já estavam instalados em cima de um consultório dentário, que pertencia ao dentista e amigo da família, Dr. Frencken. Escondidos, comendo sobretudo batatas e o que quer que a misericórdia dos amigos que sabiam onde se metiam os quisesse dar. Mas o que prevalecia era a maldita batata, claro. Havia um barril gordo só de batatas — muitas delas esverdeando-se em sua podridão em andamento.

A inflação e a certeza de que nela afogar-se-iam seus investimentos. Fora do mercado negro, meia libra de carne na Holanda quase alcançava o preço de 300 florins. A intervenção inglesa que, com o tempo, parecia se tratar não mais do que puro sonho. Batatas podres. Um esconderijo onde as luzes deveriam ser apagadas antes das seis, a fim de afastar qualquer suspeita na vizinhança. Um filho que sabia ser desagradável. O calor misterioso (não podia apenas se tratar do verão. Seu calor não despenca, como despencava este aqui). Um casamento já em avançado estado de decomposição, exalando todos os gases fedidos que um defunto tem o direito de exalar. Coisas demais para uma cabeça que só há pouco começara a ficar grisalha...

Mas ele ainda tinha o seu rádio. E a BBC. E mesmo sabendo que era muita imaturidade de sua parte, esperar salvação da parte dos ingleses era única alternativa que lhe restava.

Por isso, toda tarde arrastava para perto do aparelho uma cadeira, dobrava os braços espaçosamente sobre a mesa e deitava o queixo em sua superfície de madeira. Deixava os alto-falantes transportarem-no em suas esperanças cremosas. Esquecia-se da família e que se enterravam num buraco escuro — às vezes, via-se deslizando os dedos nos contornos do rádio, nos sulcos laterais dos botões e absorvido pela luminosidade amarelo-âmbar alienígena do dial.

Mas hoje, porém, de uma só vez, o filho chorou e aquele calor fantasma o atingiu.

Oh, Deus, como seria bom poder acabar com as duas coisas juntas!

II. A mulher correu tomar nos braços o filho que chorava — sabia como o marido ultimamente tornara-se irritável com pouca coisa. Nas circunstâncias atuais, seria compreensível uma alteração brusca nos ânimos; ela estava de acordo, quanto a isso. Mas nada explicava o comportamento explosivo dele, o qual ela nunca poderia imaginar habitando em seu próprio corpo. A mulher não viu tanto transtorno estagnado nem quando ele recebera da S.S. aquela carta: o esposo pareceu mais triste que irado. No entanto, todo o resto podre despontou após sua obsessão em ouvir aquele rádio — de fato, ela não o via somente ouvindo, mas devorando aquela porra mecânica.

Correu, e se viu surpresa por constatar como o calor em nada influenciava sua pressa. Pegou o garoto nos braços — era tão pequeno e desprotegido, para um bebê de ano e meio —, e ao analisar o porquê de sua pressa, quase se colocou a chorar também. “Oh, Deus! Por que o Senhor permitiu que os sentimentos dele por nós esfriasse dessa forma? Não bastava já a provação de uma guerra, bombas explodindo e sacudindo todo o prédio, e agora nos lança no colo mais este ‘teste de fé?”, ela se viu pensando.

O garoto queria apenas comer — aliás, era hora de todos comerem. Prato de hoje: batatas, alface e espinafre. “Até quando?”, seguiu outra pergunta mental sem resposta. O suor porejava pontos cor-de-fogo pela testa do menino; gotículas salgadas iluminadas pela luz emitida do rádio. Ela também suava, e logo rodas escuras de suor se formariam em cada braço. Como fizera calor, e tão de repente! Se pudesse ao menos abrir as janelas.

Olhou na direção do marido, e curiosamente parecia não se importar com o calor ou nada à sua volta. O traseiro colado na cadeira e o corpo inclinado para frente, os braços um sobre o outro e a cabeça apoiada no queixo sobre a mesa — e olhos vidrados na droga do rádio. Como ela odiava aquele rádio!

Perguntou, hesitante no início:

— Querido... a Inglaterra pretende inva... — Mas antes que ela terminasse, o homem fez um gesto rápido com a mão, para que a mulher se calasse. Um gesto provocativo, que agulhou o coração da esposa. Ela colocou a criança novamente em seu carrinho de bebê e girou sobre os calcanhares.

Prepararia só dois pratos, e comeriam ela e o filho. O marido e seu rádio preferido que se fodessem juntos!

III. Basta chorar, e alguém me pega no colo. Moeder o faz mais vezes. Papa parece divertido com seu brinquedo novo — eu tenho os meus, eles parecem mais legais. Estou com fome. Moeder me empurra para a cozinha. Eu chorei, ela me ergueu, me desceu outra vez e me trouxe para a cozinha. Simples. Às vezes acho que podíamos conversar assim pelo resto da vida: eu chorando, ela me entendendo. Algumas vezes, quero dizer qualquer coisa, do jeito deles, mas só sei resmungar. Isso é chato. É bem chato! Mesmo assim, tenho a impressão de que Moeder é a única que entende os meus gritinhos.

Estou todo molhado; lá perto de Papa está quente, até mais quente que aqui na cozinha... Hum, o cheiro que vem do fogão é gostoso! Já sei o que teremos hoje! Aquela coisa que Moeder amassa até ficar macia! Sim, é bem gostosa! Eu já me esqueci o nome — Moeder e Papa repetem o dia inteiro... Batata! O nome da coisa redonda que a gente amassa é batata!

Eu adoro batata!

Como isso todo dia, e não enjôo.

Desde que estamos aqui — por que estamos aqui, hein? —, é o que mais comemos.

Acho estranho aquela garota não comer nada do que Moeder faz. Tem um cheiro tão bom!

A menina de vestido escuro sempre chega quando faz calor. Eu não escuto nenhum barulhinho, só vejo quando ela já está aqui com a gente. Ela não é minha amiga. Tenho medo dela, na verdade... Hoje, ela chegou e não saiu de perto da janela. E, como faz sempre, trouxe com ela este calor. Papa e Moeder não conversam com a menina.

Por que ela carrega junto o calor? Por que meus Ouders não falam com a menininha, como se não a enxergassem? Eu a enxergo, e ela é bem branca. Da cor da camisa de Papa...

Huuum, deixa isso pra lá, Moeder já amassou minha batatinha e vem trazendo pra mim!

Meus papais são tão bons, eu gosto muito deles.



IV. Quando se está enclausurado, que acontece lá fora aos poucos passa a influenciar menos lá dentro — e num instante, começamos a ver o exterior como outro universo, espaço deslocado e inalcançável. Assim era com a família Philips. Alexander Philips não desgrudava o ouvido de um rádio: mal vestido, não tomava banho ou fazia a barba há dias. O pequeno Johan entretinha-se com o que tinha em mãos, fazendo até mesmo do objeto mais sem graça um artigo de diversão. Além disso, a menina que passou a ver (vestidinho preto) estimulava a cada dia seu ainda não tão desenvolvido raciocínio. (Só ele a enxergava, e talvez no fundo do seu coraçãozinho pulsante o soubesse.) Já a mãe ficava a julgar quanto tempo agüentaria ver batatas. Marjolein e o marido não trepavam há quase nove meses. Certa vez, a mulher escutara em uma de suas distantes aulas de pintura clássica que não havia terror maior que podar os sonhos de uma criança — não sabia por que escutara aquilo ali exatamente em uma aula de pintura. Mesmo assim, a lembrança ainda não terminara: a mesma pessoa dizia que deste, ou de qualquer outro universo ainda não descoberto, a pureza de uma criança era o elemento mais limpo idealizável, talvez a essência mais deslumbrante composta por um criador (se algum existisse, e isso agora fazia grande diferença à mulher). O pensamento encaixou-se à realidade, e com assombro descobrira que Hitler e sua escória armada faziam isso: decapitavam sem pena alguma o futuro de seu bebê. Cometiam a grave heresia de corromper a maior pureza do universo.

Enquanto pensava, enquanto seu marido absorvia-se ainda mais as emissões roucas de estática do rádio, enquanto o pequeno bebê Philips, comendo suas batatas, podia enxergar aquela garota-fantasma voltada à janela, soldados da Gestapo aproximavam-se do prédio.

De repente, um objeto incandescente voou rapidamente à janela dos aposentos: o coquetel molotov atingiu o vidro e explodiu contra sua superfície fria, mas conseguindo enviar línguas de fogo e muitos cacos para dentro do esconderijo dos Philips. “Há judeus dormindo aqui!”, uma voz feminina atravessou o buraco da janela quebrada. Sr. Philips teve apenas tempo de se afastar, carregando o rádio debaixo do braço, e então correr para junto da mulher, que alimentava o filho na mesa da cozinha. Esta, por sua vez, já havia notado a coisa toda, e em prantos removia o filho do seu carrinho de bebê. Estavam acuados como ratos, sem saber o que fazer. De início, o correto foi afastar-se das cortinas ardentes e do piso, que começava a ser consumido por aquela alergia alaranjada.

— Não... não vá... não vamos sair daqui! — disse um Alex Philips transtornado e ao mesmo tempo entorpecido pela irracionalidade. Correu e protegeu a mulher e o garoto contra seu corpo: o rádio metido entre eles.

— Tire isto daqui! — Marjolein num tapa com a mão livre enviou o aparelho tagarela contra o piso. Ao quebrar-se, todas suas vísceras faiscantes e eletrônicas se fizeram ver. O marido a fitou com olhos descrentes. — Tente pensar com a cabeça, seu idiota! Tente encontrar uma saída, e esqueça a droga desse rádio!

Não houve, porém, saída alguma. Agora, o calor ali dentro era real. Os gritos furiosos e animalescos vindos da calçada, coisas como “cacem esses judeus porcos!”, eram reais. O pavor era real. Não. Não ocorrera ao homem solução alguma; e mesmo que quisesse, mesmo que decidisse pensar, os soldados nazistas com um estrondo já haviam invadido o cômodo. “Carregam seus brinquedos”, a mente de Johan figurou, divertida.

Sim. O calor era real. Dessa vez, não invadira o apartamento num sopro sobrenatural, acompanhando outra presença sobrenatural. De alguma forma, Marjolein, levada pelo braço por um dos soldados armados, fez uma conexão entre ambas as coisas: passou a crer numa conexão.

A última coisa que Johan soube naquela noite foi que, enquanto todos eram removidos de seu apartamento, a garotinha de preto já o havia deixado antes. Já no outro dia, a primeira coisa que soube, que discerniu nos lábios chorosos do pai, antes de serem separados e o ver pela última vez, foi: “Campos de concentração.”

Um comentário:

  1. Um excelente conto!
    Com um terror que foi real para muitos judeus, assim como para tantos outros povos, durante a Segunda Guerra Mundial.
    O autor demonstra domínio sobre o assunto e conseguiu escrever um conto perfeito, que facilmente poderia ser incluso em um maravilhoso romance!
    A análise psicológica das personagens também ficou de parabéns!

    Um dos trechos interessantes:

    [i]“Carregam seus brinquedos”, a mente de Johan figurou, divertida.[/i]

    Em outras palavras: carregam seus armamentos.

    Essa parte demonstra a inocência e a pureza das crianças que seriam corrompidas e abaladas pela Segunda Guerra Mundial

    Esse texto, além de conter um "terror real", ainda tem a função social de mostrar aos seus leitores, o que se passa na mente dos que vivem uma guerra, dos que são perseguidos...
    E ainda tem a função de preservar uma memória histórica do que foi a Segunda Guerra Mundial.

    O autor não demonstra apenas dominar técnicas de escrita, mas também demonstra conhecimento, no caso, sobre a Segunda Guerra Mundial.

    Certamente, um dos melhores contos do concurso!

    Obs: Não entendi o por que de nenhum comentário nesse conto, além do meu, que é um dos melhores contos do concurso!

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