quarta-feira, 10 de junho de 2009

CARTA DE ADVERTÊNCIA

De terrível evento fui eu o centro na última noite, e não tenho condição alguma de deitar a cabeça em meu leito e adentrar o santuário do sono, talvez pelo meu estado de alerta em que me encontro, talvez por não mais merecer a dádiva da restauração pelo descanso; sendo assim, farei uso da pena para construir, neste documento, o relato das horas durante as quais vaguei pela mais profunda escuridão em minha mente, e experimentei a mais completa manifestação da natureza divina dos homens e das coisas, (pois, para mim, a partir de agora, Deus se manifesta no Terror).

Noite passada foi, a saber, noite de São Harker, lembrada pelos locais desde remotas eras. Sei disso agora, pois analisei por todos os ângulos, e verifiquei todos os tomos e alfarrábios que poderiam me dar alguma explanação do que de fato sucedeu-se comigo (e ainda sucede). Nesta região, montanhosa e rodeada por bosques lúgubres, os aldeões vivem para o trabalho e para a religião, plantando, colhendo e criando animais para sua alimentação e para a manutenção das oferendas que fazem ao seu Deus. Até antes de ontem, pensava eu que tal estilo de vida era o mais perfeito exemplo do desperdício, pois doavam suas forças e seus bens para o nada para obterem proteção contra o nada. Oh, bem sei eu que agora não mais penso assim.

O fato é que despertei devido ao som alto e surdo de batidas de marretas contra madeira, bem próximo de mim. Acordei no mais completo atordoamento, sem saber onde estava ou de onde vinha. Ouvi, logo, vozes ao meu redor, também estranhamente abafadas, mas muito próximas. Logo me alertei e pensei que estava sendo roubado dentro de minha própria residência, e que os larápios tentavam arrombar minha escrivaninha a golpes de martelo e machado. De súbito, comecei a me levantar, na completa escuridão, mas bati cabeça em algo quando começava e me curvar. A dor lancinante me fez voltar a deitar, e quando tentei trazer as mãos à cabeça para confortá-la, também bati com ambas em uma superfície logo acima do corpo. Logo, senti a constrição ao redor de todo o corpo, e senti as pernas também como que presas, muito juntas. Tateando às cegas, em agonia, esfreguei as mãos ao meu redor, e por todo o lado encontrei a superfície áspera que logo julguei ser madeira. Consegui identificar fios de luz pálida regularmente distribuídos sobre o meu corpo, vindos de frestas, e percebi que estava preso dentro de uma espécie de caixa, que logo vim a entender, no mais puro horror, tratar-se de um caixão, um ataúde. Sentia ainda um forte aroma de rosas vindo de fora, que me deixava ainda mais atônito.

Desesperadamente, pus-me a bater com toda a força possível, dado o pequeno espaço, na parte de cima do caixão. Irracionalmente, gritei a plenos pulmões por socorro. Ao som da minha voz, os sons de batidas e de conversas fora do caixão cessaram subitamente. Alguns segundos depois, no entanto, ouvi uma voz masculina muito tensa dizer algo como “ele despertou!”; depois, passos rápidos em minha direção foram seguidos por um tranco em minha pequena prisão e por um grito de “cale-se, diabo, que tua hora já chega”. Logo, mais passos e outras vozes fizeram a primeira recuar, dizendo para que se acalmasse e aguardasse o fim da cerimônia.

Ao ouvir a palavra cerimônia fui tomado por tal inquietação e pânico que tremia sem parar, mesmo sem saber por quê. Apenas sabia que algo extremamente planejado e terrível estava por acontecer. Procurei organizar meus pensamentos, encontrar uma explicação racional para o que se passava, mas todos os meus sentidos apenas apontavam para um grande perigo iminente. Em um curto momento de autocontrole, resolvi tentar enxergar algo do que se passava ali fora. Encostei a cabeça junto à madeira e procurei por uma das frestas que havia visto antes. Encontrei uma, mas através desta via apenas algo que parecia um pequeno monte de feno e a ponta do que parecia ser o cabo de alguma ferramenta de plantio; concluí daí que havia sido colocado em cima de uma carroça ou outro tipo de transporte rural para ser trazido até ali. Encolhi-me e revirei-me um pouco e procurei por outra fresta que me desse alguma visão. Encontrei outra, um pouco mais abaixo, que me permitia ver o local e o que se passava, e o que vi ali fez que com meus ossos derretessem de pavor.

Vi que me encontrava em uma clareira no bosque próximo ao norte de minha residência, que me era estranhamente familiar. Não lembrava de haver estado ali antes, mas inegavelmente eu conhecia aquele lugar. Vi uma pilha de pedras ao fundo arrumadas de forma que apresentavam o aspecto de mesa ou balcão comprido, sobre o qual poderia ser colocado o corpo de uma pessoa sem que faltasse espaço. Vi que havia lamparinas de óleo que iluminavam o local, e vi os homens ali reunidos, trabalhando. Comecei a ver, horrorizado, em quê eles trabalhavam: bem ao meio da clareira haviam feito uma pilha de lenha, bastante grande e alta; também vi que trabalhavam em algo que estava no chão, objeto que vários homens circulavam e em que batiam com martelos. Não podia reconhecer o que era, mas vi que usavam hastes de madeira e cordas. Entretanto, logo tive a chance de vislumbrar o que faziam, pois resolveram testar o instrumento haviam construído: uma grande cruz de madeira muito escura (pintada, me pareceu) que, quando içada por cordas amarradas em árvores, ficava exatamente sobre a pilha de lenha no centro da clareira e, mais ainda, ficava de cabeça para baixo. Quando compreendi que a cerimônia iria culminar comigo preso à cruz, de cabeça para baixo, sendo queimado vivo em uma grande fogueira, fui tomado pelo medo e pus-me a chorar como uma criança que perde-se da mãe. Ah, jamais antes eu houvera me perguntado quanto horror minha mente seria capaz de suportar antes do colapso, e agora eu me impunha esta questão.

Entrei em completo desespero e comecei a debater-me, socando e chutando as paredes do ataúde, entre gritos e gemidos. Devo ter usado de força descomunal, sem que me desse conta, pois acabei fazendo com que minha prisão caísse de cima da carroça e batesse com força no chão, causando alvoroço entre os homens, pois alguns deixaram escapar gritos de espanto, enquanto uma voz mais exaltada chamava a atenção para o fato de que “o ramo de rosas se desprendeu do caixão e o maldito agora é livre!”. Naquele momento eu não tinha compreensão do que poderia significar tal coisa. Estando no chão, continuei a esmurrar as paredes da caixa, na tentativa de desestabilizar a estrutura, mas logo a tampa foi arrancada por violência por alguém do lado de fora, e eu me vi paralisado, em choque. Braços rudes, embrutecidos pelo trabalho pesado nos campos me tiraram da caixa e me jogaram próximo à pilha de lenha. Durante toda a ação, pude ver que um dos homens encontrava-se em vestes sacerdotais brancas e recitava, sem nunca parar, versos de orações em uma língua que pensei ser aramaico, enquanto segurava um livro de aspecto antigo. O mesmo homem indicou com uma das mãos que a cruz deveria ser novamente descida ao chão, e entendi que aceleravam meu pavoroso destino.

Aos gritos, cobrei motivos e fundamentos para o que faziam, mas nenhum deles dizia-me algo diretamente, apenas ouvi as palavras “aborto”, “demônio” e “impureza” serem ditas entre sussurros maldosos. Não pude compreender todo o ódio que emanava do grupo, pois julgava nunca tê-los perturbado, vivendo eu sozinho em minha residência. Quando começaram a me arrastar para junto da cruz, lutei com todas as forças que me sobraram para impedir a crucificação, mas eram muitos e muito obstinados, e logo me dominaram. Ergueram-me e logo me baixaram novamente, sobre a cruz, e me abriram os braços, colocando-os sobre as hastes de madeira. Vi que um deles corria para junto de uma das lamparinas e voltava com uma marreta e uma das mãos cheias de cravos de metal muito grandes, e logo entendi para quê serviriam. Fui tomado pelo terror mais uma vez, e minhas forças se esvaíram. Mas então, no fundo de minha desolação, senti um odor familiar, profundo, doce, que me instigava a língua e o nariz; senti que estava rodeado pelo odor, e logo o reconheci: era sangue. Entendi o porquê da escuridão da madeira da cruz, pois vi que a tinham banhado completamente com sangue, talvez seguindo alguma prescrição antiga do livro de rituais do sacerdote.

Posso dizer agora, meu leitor, que este foi o grande erro que cometeram. Ao tocar o sangue, e ao sentir seu cheiro, fui tomado por uma sensação animalesca, por uma luxúria que eu julgava nunca ter sentido, mas que logo antigas memórias que emergiam me fizeram ver que já havia experimentado, e muitas vezes. Senti que algo muito maior que eu mesmo começava a despertar e exigia que eu desse sala em meu próprio corpo. Quando um dos homens se ajoelhou ao meu lado e ergueu uma das mãos com a marreta para estocar um cravo em meu braço, eu já entrava em inconsciência, como que caindo em um profundo poço, vendo, antes que a luz sumisse por completo, que uma das minhas mãos agarrava e arrancava o braço do homem, como uma moça arranca uma margarida do solo. Era meu corpo, mas não eu, que fazia aquilo, mas eu já não sentia horror ou culpa, apenas dormência; não sei agora se a inconsciência é uma benção divina ou um instrumento de martírio

Tornei à casa agora, mas não sei por onde possa ter andado nas últimas horas. Recobrei a o juízo completamente apenas minutos antes de começar a redigir esta missiva. Encontro-me coberto de sangue ressequido, em especial os dentes e lábios, que me apavoram quando olho-me no espelho. Encontro-me em minha casa, e julgo que retornei sozinho, pois não há vestígios da presença de ninguém mais aqui. Não quero pensar no que possa ter havido aos homens de ontem, embora em minhas entranhas eu já o saiba. Continuo a escrever este texto apenas para tentar amarrar minha lucidez a algo físico e terreno.

Se você, meu leitor, estiver a ler isto e não estiver a me ver, aproveita e foge, pois sou forçado a deixar a casa agora movido por um desejo incontrolável e imensurável de descer as colinas, em direção aos vilarejos. Um odor deveras agradável e doce sobe de lá, e me lembra algo vivo e feminino. Temo que realmente eu seja uma abominação que deveria ser de fato queimada viva e extinta para todo o sempre, como algo que escapou à mão de Deus durante a criação, mas o instinto de sobrevivência grita quase tão alto quando o desejo que o odor me causa. Sendo assim, não posso deixar que dêem cabo de minha vida sem resistência; então, repito, se ainda não estiver me vendo, fuja. E se estiver, reze e lute, torcendo para que eu não o tenha visto antes.

2 comentários:

  1. Tirando algumas poucas vírgulas que vc não pôs no inicio de sua narrativa... eu achei o seu conto OTIMO!! Estou acompanhando a todos aqui, para ver em quem irei votar, e até agora o seu foi o que mais me chamou a atenção. Uma ótima narrativa, um bom vocabulário, e a tensão utilizada por vc ao escrever esse conto foi sublime. Até agora, foi um dos melhores que eu li!! Você está de parabéns!! Boa sorte!!

    P.S: Pena que não tem nenhum comentário aqui, mas fiz questão de estrear, pois gostei muito mesmo!!

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  2. Obrigado, realmente. Foi muito bom ver alguma reação aqui, ainda mais uma tão positiva. Apenas me arrependo de não ter feito uma última revisão no texto; terminei de escrevê-lo e logo o enviei para a postagem.
    Mais uma vez, obrigado. As críticas, no fim, acabam sendo tão importantes (ou mais) quanto o prêmio, sejam positivas ou negativas.

    O autor.

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