quarta-feira, 10 de junho de 2009

A PRINCESA DE LENINGRADO

Quando eu acordei estava com a imagem de Eckel gritando comigo na cabeça, em forma de uma confusa alucinação podia ouvir até meu nome sair por seus lábios rachados pelos ventos gelados: “Grimm!”. Mas em alguns minutos constatei que não havia nada nem ninguém num raio de muitos metros, talvez quilômetros. Como poderia saber? Mal sabia se estava vivo, achava que Eckel e os rapazes que estavam no caminhão haviam morrido, mas não havia como ter certeza de coisa alguma. Quando vi a silhueta de algo se aproximando no horizonte de Leningrado descobri que a sensação de pânico e morte causada pela presença dos russos ainda estava impregnada em mim, pois a primeira coisa que fiz foi atirar nela.

Não pude ter certeza se havia acertado ou não, estava longe, mas não me demorei a atirar de novo e ficar satisfeito ao ver a pessoa que vinha em minha direção cair. Andei com passos cautelosos até que por fim me deparei com um garoto russo talvez um ou dois anos mais novo que eu, com minha bala no pescoço e uma metralhadora sem balas nas mãos, estava tão perdido quanto eu antes de morrer.

Agachei-me próximo e ele agarrou a gola do meu casaco. Apontando desesperadamente para uma brecha no céu invisível acima de nós ele parecia fazer uma saudação ao Fuhrer, mas na verdade ele apenas me mostrava um raro vislumbre de raios solares que se escapavam por entre as nuvens cinzas. Parecia querer dizer algo, mas não pode.

Morreu no instante seguinte. E no instante seguinte ela também surge em minha frente como uma silhueta, só que dessa vez perto demais ao invés de perigosamente distante. Eu a olhava de baixo, enquanto segurava o cadáver inimigo, e apesar de naquele momento não distinguir bem suas faces, pude ver que sorria e que seus dentes eram brancos como aquele lugar. Quando me levantei constatei que sua pele também era. Minha arma estava apontada para ela, mas ela ainda sorria, seus cabelos pretos como o escuro, atrapalhavam sua visão com a ajuda do vento. Minhas mãos tremiam, pois ao olhar bem para seus olhos, questionei-me se atiraria se precisasse.

Ela riu delicadamente como uma criança e deu um pulo para perto de mim, estremeci ao ver o que vestia. Como não estava morta de frio? Apenas um fino casaco vermelho, sapatos pretos comuns com meias brancas e uma saia elegante mais aparentemente muito, muito velha. Seu corpo, naquelas frágeis vestes, entregava-lhe seus dezenove ou vinte anos, mas seu rosto mentia dezesseis ou dezessete, ou talvez fosse o inverso disso.

Afastou a arma de seu rosto e deu um beijo no meu. Não soube o que fazer, fiquei imóvel por algum tempo e ela não parava de me olhar. Ela perguntou se eu estava perdido, eu confirmei, ela perguntou se eu estava com fome, eu confirmei, ela perguntou quanta fome, eu disse que estava faminto. Ela pediu que confiasse nela se quisesse comer e saiu andando. Eu a segui.

Às vezes perdia ela de vista por causa da neve, ela sempre virava pra trás para verificar se eu ainda a seguia. Quando comecei a cair em mim e a me questionar aonde aquela menina me levava ela parou e olhou pra mim séria dessa vez. Apontou para uma casa alguns metros à frente, um pequeno morro abaixo. Ela disse que era lá que morava. Parecia que o vento o destruiria, mas num olhar mais atento pude constatar que era seguro e aconchegante.

Ela entrou na frente, mas eu a segui de perto e senti seu perfume. O interior era escuro, cheirava a incenso, e ela num segundo desapareceu, mas noutro reapareceu com a luz forte de um lampião a querosene em suas pequenas mãos. Ela o pendurou na parede, ao lado de um quadro que me deixou inconfortável. Eram aberrações, obra grotesca, a morte da arte, a degeneração da razão. Aquilo não tinha lugar no ideal nazista, mas agora eu dependia dela. Perguntei se ela era judia, ela apenas riu e perguntou se eu a mataria se fosse, eu não respondi. Ela não pareceu se abalar com isso e simplesmente respondeu que não. Ela falava Alemão com um sotaque estranho, não consegui identificar a origem.

Se jogou no sofá vermelho que ficava abaixo de outro quadro demoníaco. Eu olhei tanto para os quadros que mal me concentrei nela, mas sabia que estava apenas fugindo de outra batalha perdida. Fiquei surpreso quando ela disse que pintara todos os quadros, então num segundo, fantasticamente, os quadros tornaram-se belos.

Olhei ao redor e vi uma poltrona logo atrás de mim, dei um passo pra trás e me sentei. A garota de lábios exageradamente vermelhos prontamente pegou minha arma, meu capacete, e tudo que me incomodava e levou para baixo de uma escada no canto oposto da sala. Ela perguntou meu nome, eu respondi e ela pareceu satisfeita. Perguntei-lhe como se chamava e ela disse para lhe chamar como desejasse. Eu a chamei de Alessia, a palavra saiu flutuando de meus lábios como se fosse meu destino batiza-la naquele momento.

Ela me deu comida enlatada, carne e vodka para beber, e eu matei minha fome. Adormeci por uma meia hora na poltrona e acordei com os panos que estavam sobre meu colo para não me sujar no chão junto com os cacos de porcelana do prato em que comi. Ela havia deixado roupas de homem cuidadosamente dobradas no sofá em que havia se sentado anteriormente. Deduzi que devia me trocar, minha roupa estava molhada e suja, mas eu também estava. Quando toquei as peças ela apareceu no topo escuro da escada e disse para eu ir tomar banho. Explicou-me onde ficava o banheiro e as toalhas. Por um momento achei que ela fosse juntar-se a mim, mas não o fez.

Quando saí ela me esperava com uma sopa que havia esquentado para comermos com pão caseiro. Apesar de ter me saciado comendo a primeira refeição que Alessia me servira, dessa vez ela me acompanharia. Nós comemos e estava deliciosa. Ela perguntou se eu estava satisfeito, se havia gostado da comida, e eu descubro que é impossível descrever o quanto. Ela dá um sorriso delicado, especial e ingênuo que faria qualquer um se apaixonar facilmente.

Em seguida nós subimos as escadas e a madeira rangia com o nosso peso. Lá em cima pouco se via; a única iluminação era uma grossa vela que Alessia levava em sua mão esquerda, sem candelabro. Quando chegamos ao meu quarto ela deixou a vela num pequeno pires no criado-mudo ao lado da minha cama e disse que me traria um chá para eu dormir bem.

Tomei o chá e também era delicioso como tudo que consumira naquela casa. Ela me deu um beijo de boa noite no rosto, senti sua pele gelada tocar meu rosto e quis morrer por não tê-la. Antes de adormecer senti algo estranho em meu estômago e meus pensamentos se inundaram de lembranças horríveis. Fiquei lembrando do que acontecera nos últimos momentos antes de eu vir para cá, antes de eu encontrar Alessia no meio da neve. Não saberia o que fazer ao acordar, decidi que seria preciso que eu saísse antes que ela acordasse, para não lhe dar chances de me impedir, afinal eu ficaria sem que ela precisasse insistir, ficaria mesmo se ela pedisse apenas uma vez. E eu não podia ficar, a nação vinha na frente.

Meu sono foi perturbado. Sentia as dores musculares dos dias e dias de caminhada na neve. Demorei a adormecer profundamente, mas quando consegui fui levado para lugares sinistros dentro da minha mente, onde procurava Alessia por aquela casa sem encontra-la, onde o cadáver de Eckel sorria pra mim em flashes perturbadores. Antes de acordar tive uma última visão, aquela linda garota banqueteando o intestino de meu companheiro e convidando-me a partilhar-lhe aquelas delícias com ela. Já não parecia mais tão humana, de tão bela que ficara com o sangue ensopando-lhe as faces. Ela me beijou e senti o gosto do doce líquido descendo pela minha garganta.

Acordei suado e ofegante por causa do pesadelo. Esfreguei meu rosto com as mãos por alguns minutos enquanto refletia. O silêncio da casa me permitia ouvir os uivos furiosos do vento lá fora. Quando coloquei os pés no chão percebi que minhas pernas tremiam um pouco. Andei até o andar de baixo e meu estômago roncou furiosamente. Procurei algo para comer, não havia nada além de poeira nos armários da cozinha, nem sequer os pratos e utensílios que usamos para comer estavam lá.

Vesti minhas roupas e ao dobrar cuidadosamente as que Alessia me emprestara, indaguei-me de onde elas tinham vindo, que outro homem havia passado por ali. De qualquer forma não importava, eu tinha de partir, mas tinha que olhar uma vez mais para a garota.

Subi as escadas antes de vestir as botas de combate para não fazer barulho. Procurei por seu quarto, mas o único cômodo além do banheiro e do quarto no qual eu mesmo dormi estava vazio. Não havia cama, nem abajur, nem janelas. Apenas paredes brancas, algumas velas negras espalhadas no chão vermelho-sangue e uma vitrola tocando uma música indecifrável, mas que me hipnotizara por alguns segundos.

Senti-me como no pesadelo que acabara de ter, sufocado pela falta que fazia sua presença. Mas meus lamentos são interrompidos quando de repente sinto seu toque gélido em meu pescoço. Meu coração bateu forte, ela segurava a vela perto do rosto e estava descalça dessa vez, tive vontade de morder seus pés de tão perfeitos que eram. Ela disse para mim ir embora se assim quisesse, mas queria me alertar que eu morreria em pouco tempo se o fizesse. Ela tinha razão, mas eu partiria.

Descemos as escadas e a cada degrau uma sinistra tontura começava a tomar conta de meus passos, pensei ser causa da angústia que me causara o fato de ela não ter me convidado a ficar, apenas me alertado sobre partir. No último degrau Alissia teve que me segurar. Botou-me no sofá e me trouxe mais chá. Quando terminei de tomá-lo a tontura aumentou, começava a ficar difícil distinguir as cores e quando olhava para os olhos daquela garota me perdia em pensamentos que pulavam de minha cabeça. De repente a via com o rosto manchado de sangue, e via outra garota exatamente como ela descendo a escada, saindo de trás do sofá e passando pela porta da cozinha. Todas elas com a mesma roupa, a mesma beleza e o mesmo sorriso vermelho. Senti como se meu coração fosse parar, meu corpo gelou e minhas mãos suavam. Meu estômago rugia, se apertava, se constrangia, eu me arrastei no chão de dor. Eu batia a cabeça no assoalho para não desmaiar, não podia, pensei que todas aquelas Alessias iriam me devorar.

Alguns segundos depois eu vomitei, parecia que não ia acabar o caldo preto que jorrava de minha boca enquanto a mão gelada da linda garota segurava minha testa. Eu olhei pra ela quando o vômito cessou e ela não tinha sangue no rosto nem cópias demoníacas espalhadas pela casa, mas a dor ainda continuava, junto com todas as outras sensações perturbadoras.

Ela me colocou sentado, tendo convulsões, na poltrona que me sentara no dia anterior, me deu um longo beijo francês e fitou o sofá da frente, no qual estava o corpo do russo que eu havia morto. Ela apontou para o corpo daquela forma inocente, e eu logo entendi o que precisava ser feito. Podia ser um ato selvagem, eu podia estar doente, mas Deus, como eu senti prazer em fazer aquilo. A dor parecia ter passado, o gosto era ótimo e eu não me importei por ter enlouquecido.

Quando terminei a dor voltou dilacerando ainda mais minha compostura. E eu estava de novo como um verme no chão me contorcendo ao lado dos ossos do homem que eu acabara de devorar. Enquanto rolava pelo tapete uma peça de roupa íntima grudou em meus cabelos, e havia outras espalhadas numa fila de “pistas” que levavam até Alessia, nua e me esperando naquela poltrona. Ela disse em meu ouvido num sussurro orgástico enquanto eu rasgava sua inacreditavelmente deliciosa pele com meus dentes: "Oh sim meu querido, isso é o limite do quanto você pode desejar alguém." Então me indaguei se não estaria a mais tempo do que pensara estar, dentro daquele chalé com a garota e a fome.

2 comentários:

  1. O conto foi até bem descrito, mas não achei o desfecho "grandes coisas". Não teve tanto mistério, foi uma trama meio obvia!!

    ResponderExcluir
  2. Conto excelente! Muito visual e imaginativo. Parabéns!

    ResponderExcluir